Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora
«Ajuda letal»?
Um modismo assente numa clara contradição

«A expressão «ajuda letal» foi retomada recentemente na comunicação social portuguesa, associada ao contexto da guerra na Ucrânia para referir o apoio em armamento bélico ao Governo de Kiev por parte  dos EUA e outros países ocidentais». Um modismo que encerra uma clara contradição, como explica a professora Carla Marques

Pergunta:

Sobre o uso (por vezes incorreto) do verbo derivar, perguntava-vos se, na frase apresentada, é possível aceitar o seu uso:

«A poluição deriva da falta de civismo.»

Cordialmente.

Resposta:

O verbo derivar pode ter o significado de “ser proveniente de; ter a sua origem em; proceder” (Dicionário Houaiss), entre outros.

Ora, a frase apresentada permite a substituição de derivar por «ter a sua origem em», assegurando uma leitura não literal:

(1) «A poluição tem a sua origem na falta de civismo.»

Por esta razão, poderemos considerar que o uso de derivar no caso em apreciação é aceitável. Derivar poderá ser substituído por outros verbos ou expressões, eventualmente mais expressivos, como resultar, advir ou «ser consequência de».

Relativamente a usos incorretos de derivar, veja-se esta resposta.

Disponha sempre!

Pergunta:

Podemos considerar o vocativo como deítico pessoal?

Resposta:

A deixis pessoal refere os participantes numa dada situação comunicacional. Neste âmbito, os pronomes pessoais assumem uma relevância central na medida em que a sua referência se constrói sempre em função das pessoas presentes na situação discursiva. O eu é a pessoa que fala, pelo que a referência do pronome será diferente de enunciação para enunciação, assim como o tu tem como referência a pessoa a quem o eu se dirige.  

O vocativo é uma função sintática que se associa a «formas que desempenham uma função apelativa, ou seja, que servem para chamar, interpelar ou invocar, identificando a pessoa a quem o falante se dirige diretamente (2.ª pessoa dêitica), quer para iniciar, quer para manter ou terminar a comunicação.»1

Pelo que ficou exposto, conclui-se que a função sintática vocativo é efetivamente deítica, na medida em que tem como referência a segunda pessoa (tu), aquela a quem o eu dirige o discurso.

Disponha sempre!

 

1. Nascimento in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2727 – 2728.

Pergunta:

É correto "preposicionar" uma oração subordinada substantiva predicativa, como frequentemente ocorre em frases como essas:

«A tendência é de que os preços aumentem.»

«A expectativa é de que eles não irão recuar.»

Resposta:

Não é correto introduzir a preposição de antes de uma oração subordinada completiva com função de predicativo do sujeito. Por esta razão, deveremos optar pelas frases (1) e (2):

(1) «A tendência é que os preços aumentem.»

(2) «A expectativa é que eles não irão recuar.»

O fenómeno que está patente nas frases apresentadas pelo consulente recebe o nome de dequeísmo e consiste na introdução da preposição de em contexto onde ela não é necessária nem está prevista do ponto de vista gramatical. Trata-se de um fenómeno de hipercorreção que leva os falantes a usar a preposição em contextos onde ela não é exigida pelo motivo de considerarem essas situações similares a outras em que a preposição é exigida ou é possível1.

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, cf. Barbosa in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1896 – 1897.

Pergunta:

Para além da minha profissão na área tributária, sou escritora e poeta. A língua portuguesa é, para mim, essencial no meu dia a dia e costumo dizer que tive o privilégio de ter bons professores de português ao longo da minha vida estudantil. A minha tendência natural foi seguir Humanidades, desejando formar-me em História, contudo acabei em Direito. Recentemente, para além do prazer, por necessidade, comecei a fazer revisão de textos (técnicos, históricos, infantojuvenis, poéticos/poesia…).

Naturalmente, que no decorrer desta nova atividade, tenho-me deparado com todo o tipo de formação e conhecimento das pessoas que se cruzam comigo. Na sequência da revisão a um prefácio elaborado num livro de poesia por uma professora de português, e em virtude de não ser do meu conhecimento a utilização de, no final de uma frase, reticências seguidas de um ponto de exclamação, questiono se tal é correto aplicar-se.

Segue um exemplo: «[…] A determinada parte do texto, verifica-se uma dor plangente, e a necessidade de uma fuga que se crê premente, porquanto, só os braços da sua mãe, lhe dão o conforto que o mundo roubou sem porquê…! […]»

Grata, desde já, pela atenção que possam dispensar.

Resposta:

A combinação das reticências com o ponto de exclamação está prevista nas gramáticas, mas não pela ordem apresentada.

As reticências são usadas para assinalar uma suspensão na frase. Neste âmbito é possível a sua combinação, por um lado, com a vírgula ou ponto e vírgula, mantendo as reticências um valor melódico, indicando, por exemplo, uma pausa expressiva (muito comum no discurso dramático). A vírgula (ou ponto e vírgula) coloca-se depois das reticências, permitindo a continuação da frase:

(1) «Passai, ó vagas…, mas passai de manso!» (Castro Alves, Obra completa1)

Por outro lado, as reticências podem combinar-se com sinais melódicos (ponto de interrogação e ponto de exclamação, ou até os dois sinais em conjunto). Como explicam Cunha e Cintra, «[n]este caso, as reticências prolongam a duração de certas inflexões interrogativa e exclamativa e acrescentam-lhes certos matizes particulares»2. Neste caso, as reticências colocam-se depois do ponto de interrogação ou ponto de exclamação. Veja-se o exemplo:

(2) «Margarida – (a gritar) Jesus! Virgem Mãe!...

        Custódia – Que foi?... Que foi isto?!...»3 (Bernardo Santareno, O crime da aldeia velha)

Assim sendo, na frase apresentada a ordem dos sinais de pontuação deveria ser invertida:

(3) «A determinada parte do texto, verifica-se uma dor plangente, e a necessidade de uma fuga que se crê premente, porquanto, só os braços da sua mãe, lhe dão o conforto que o mundo roubou sem porquê!…»