Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Agradecia a vossa ajuda na identificação da modalidade da frase: «Mas a grande vantagem do livro e da leitura está na demonstração da imperfeição humana.»

Será modalidade apreciativa ou epistémica com valor de certeza. Porquê?

Muito obrigada.

Resposta:

Podemos considerar que a frase apresentada configura o recurso à modalidade apreciativa.

A modalidade apreciativa apresenta uma apreciação ou um juízo de valor do locutor relativamente ao conteúdo do seu enunciado. Assim, na frase em apreciação, poderemos considerar que existe uma asserção de base, aqui formulada em (1):

(1) «O livro e a leitura demonstram a imperfeição humana.»

Assumindo que esta situação foi dada como verdadeira num momento anterior ao ato de fala apresentado (ou que poderá ser validada no momento da fala), o segmento «a grande vantagem» corresponde a um juízo de valor positivo do locutor sobre o enunciado proposto em (1). Por essa razão, é aceitável considerar que a frase transcrita em (2) apresenta a modalidade apreciativa:

(2) «A grande vantagem do livro e da leitura está na demonstração da imperfeição humana.»

Disponha sempre!

Negociação
Do ato mercantil ao diálogo

Crónica da professora Carla Marques dedicada à palavra negociação, no âmbito das difíceis negociações entre a Ucrânia e a Rússia, no contexto da guerra entre estes dois países, explora-se uma palavra fulcral, cujos primeiros sentidos se desenvolvem no âmbito mercantil para depois evoluírem para o plano da comunicação. 

Pergunta:

Gostaria, se possível, que dissertassem um pouco sobre o predicativo do sujeito na seguinte frase «Esse bolo é para mim».

Sabendo que o predicativo é uma característica do sujeito, como defender a ideia de que «para mim» é uma característica de «esse bolo».

Certo do auxílio, agradeço.

Resposta:

O verbo copulativo pode combinar-se com predicações de várias naturezas: de base nominal (1), de base adjetival (2), sintagma preposicional (3) ou sintagma adverbial (4):

(1) «O João é um homem forte.»

(2) «O João é simpático.»

(3) «O João é do Porto.»

(4) «O João está bem.»

Os verbos copulativos permitem atribuir uma propriedade ao sujeito ou descrever um estado do sujeito1.Quando uma preposição é usada para introduzir o predicativo do sujeito, esta representa a relação que as duas entidades (sujeito e predicativo) mantêm entre si2. Neste âmbito, a preposição para, que nos interessa em particular, é usada «em constituintes com o papel temático de beneficiário, que representam um indivíduo (ou um grupo) que tem algo a ganhar ou a perder com o evento representado na frase»3.

Assim, se prestarmos atenção à frase apresentada pela consulente, aqui transcrita em (5), veremos que se trata de uma frase copulativa, na qual se atribui uma propriedade ao sintagma nominal «esse bolo»:

(5) «Esse bolo é para mim.»

O constituinte preposicional «para mim» assinala o beneficiário da situação e, tratando-se de uma construção copulativa, é associado ao sujeito como uma propriedade (transitória) sua.

Disponha sempre!

  

1. Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1304

2. Raposo in id., Ibid., p. 359

3. Raposo e ...

Pergunta:

A palavra fogo tem muitos sentidos, um deles exprime espanto, desapontamento, dor, indignação, etc.

Podia ajudar-me criar uma frase ou descrever uma situação sobre este significado?

Obrigada!

Resposta:

Com efeito, a palavra fogo pode ser usada como interjeição, em contextos informais, com a intenção de exprimir espanto, desapontamento, dor, indignação. Note-se que será pelo contexto que estes sentidos serão ativados. Eis alguns exemplos:

(1) «Este monumento é enorme. Fogo!» (expressão de espanto)

(2) «O Rui não veio. Fogo!» (expressão de desapontamento)

(3) «Queimei-me no lume! Fogo!» (expressão de dor)

(4) «O António ficou com os bilhetes para ele. Fogo!» (expressão de indignação ou de desapontamento)

A este propósito, leia-se também esta resposta.

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase:

«Duas causas contribuíam para este anseio generalizado. Por um lado, a evolução literária, com o renascimento do gosto pelos modelos da antiguidade. Os humanistas manifestavam o desejo de ressuscitar os géneros clássicos, entre os quais se contava a epopeia, representada sobretudo pelos poemas homéricos – a Ilíada e a Odisseia – e pela Eneida, de Virgílio. Por outro lado, havia o tema a impor o livro.»

Os conectores «por um lado» e «por outro» – transmitem uma ideia de alternativa ou de adição?

Obrigada

Resposta:

No excerto apresentado, os conectores «por um lado… por outro» têm um valor enumerativo e de ordenação.

O facto de na frase inicial se afirmar a existência de duas causas para uma dada situação leva a que se interprete cada uma das sequências seguintes, respetivamente introduzidas por «por um lado» e «por outro», como constituindo as causas anunciadas inicialmente, servindo os conectores para marcar a abertura da sequência onde se apresenta cada uma das referidas causas.

Noutro plano, estes conectores, funcionando a par, contribuem para assinalar a ordenação das diferentes partes do texto, evidenciando como este se organiza.

No excerto em questão não se identifica o valor de alternativa devido à interpretação que é desencadeada pela frase introdutória. No entanto, refira-se que os conectores/marcadores textuais podem assumir diferentes valores em função do texto em que surgem. Este é também o caso de «por um lado… por outro», que podem contribuir para o valor de alternativa em frases como a que se apresenta em (1):

(1) «O João tinha duas possibilidades: por um lado, poderia ir para casa descansar; por outro, poderia sair com os amigos.»

Neste caso, a frase introdutória abre caminho à interpretação dos segmentos textuais seguintes como duas possibilidades que se apresentam em alternativa. Estas alternativas encontram-se sinalizadas por «por um lado… por outro».

Disponha sempre!