Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Estive lendo estes dois artigos em O Globo e na agência de notícias Alma Preta.

Em ambos, foi levantada a questão de o sentido original de algumas palavras não ser mais respeitado. Daí, a dúvida: devemos levar isso a sério realmente, se a maior parte das palavras troca de sentido com o passar dos tempos?

É porque, em um artigo, dizem que foram deturpados os sentidos originais das palavras aniversário e obra-prima. Já no outro, dizem que foi deturpado o sentido original da palavra índio! Mas não é bem comum que palavras passem por mudanças um tanto quanto radicais e extremas, sejam para o bem, sejam para o mal? Vejam o caso da palavra desaforo, por exemplo, na página Origem da Palavra!

Pois muito bem, que palpites vocês próprios têm disso tudo aí de verdade?

Por favor, muitíssimo obrigado e um grande abraço!

P.S.: por falar em aniversário, percebi que vocês fizeram 25 anos de existência enquanto site. E eu também faço anos no dia 29 de janeiro. Bem legal poder fazer anos! Não é verdade isso?

Resposta:

Na verdade, os estudos de história da língua mostram que a evolução das palavras através dos tempos é marcada por uma transformação mais ou menos acentuada dos seus sentidos. Se há palavras que conservam alguns dos traços de significação originais, que possuíam em latim ou noutras línguas, outras sofreram profundas evoluções no que aos seus sentidos diz respeito. Exemplificando este fenómeno, Mário Eduardo Viaro, professor da Universidade de São Paulo, aponta vários casos de evolução dos significados1:

(1) cara é usado no português do Brasil com o significado de «pessoa»

(2) pessoa encontra a sua origem em persona, que significava «máscara»

(3) testa significava originariamente «vaso, telha, caco»

A língua é uma entidade dinâmica que está em constante evolução e transformação e esse é um dos traços que a caracterizam mais profundamente. Basta olhar um pouco para trás no tempo e perceber como ela era atualizada de forma diferente daquilo que acontece atualmente.

Em nome do Ciberdúvidas, agradecemos e retribuímos a nota de parabéns que nos deixa.

Disponha sempre!

 

1. Mário E. Viaro, "História das palavras: etimologia" [disponível aqui].

Maioria
… mas sem tirania

A propósito dos resultados eleições legislativas em Portugal, que deram maioria absoluta ao Partido Socialista, a professora Carla Marques reflete sobre os significados da palavra maioria

Pergunta:

Que sentido tem a expressão «elegância florentina», usada na crónica de Clara Ferreira Alves na Revista do semanário Expresso [de 22/01/2022]?

Resposta:

O adjetivo florentino forma-se a partir de Florença, cidade localizada na região da Toscana, em Itália, que foi durante muito tempo capital da moda e é conhecida por ser o berço do Renascimento italiano. A cidade acolhe obras de artistas do Renascimento, como Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci, GiottoSandro Botticelli, Rafael, Donatello, entre outros. Por estas razões, o adjetivo florentino convoca as ideias de requinte, harmonia de formas ou perfeição.

Assim, quando Clara Ferreira Alves, na sua crónica intitulada «O líder que não se demite» (revista do Expresso), profere a afirmação que transcrevemos em (1), pretende afirmar que Mitterrand conseguiu sobreviver a vários escândalos de forma elegante, requintada e até com toques de perfeição. De tal forma que a sua imagem permaneceu intocada e apreciada pelos franceses:

(1) «Mitterrand usou o truque para sobreviver a vários escândalos,...

Pergunta:

Qual das frases está correta? Ou estarão as duas?

«Todos os que estavam com ela sorriam e a acarinhavam.»

«Todos os que estavam com ela sorriam e acarinhavam-na.»

Resposta:

As duas formas são aceitáveis.

De uma forma geral, as orações coordenadas copulativas introduzidas pela conjunção e e as orações coordenadas adversativas introduzidas pela conjunção mas, assumem as regras de colocação dos pronomes clíticos que se aplicam às frases simples ou às orações subordinantes. Isto significa que os pronomes nelas incluídos são colocados em posição enclítica, isto é, depois do verbo, se não existir no interior da oração nenhum elemento que atraia o pronome para posição proclítica, isto é, para antes do verbo. Em (1), a posição é enclítica porque nenhum elemento atrai o pronome e em (2) é proclítica porque o pronome ninguém atrai o pronome:

(1) «O João deu-lhe um livro e pediu-lhe ajuda.»

(2) «O João pediu ajuda e ninguém lha deu.»

Não obstante, como afirma Martins, «[n]as estruturas coordenadas copulativas, a presença de elementos indutores de próclise num dos termos da estrutura coordenada pode condicionar, ou não, a colocação dos pronomes clíticos nos termos subsequentes da mesma estrutura»1. A autora apresenta exemplos como:

(3) «as trevas davam lugar a uma espécie de paz branca, a uma espécie de ausência, pensou ainda E amanhã?, e nada lhe doía já, o ofendia, o incomodava, o perturbava» (CPRC, L. Antunes, Fado)

Desta forma, podemos considerar ambas as frases apresentadas corretas, tanto com próclise do pronome da oração coordenada (4), como com ênclise (5):

(4) «Todos os que estavam com ela sorriam e a acarinhavam.»

Pergunta:

Ao ler a frase "Proteja-se a si e aos outros" fiquei com uma dúvida. Qual a razão para usar "a si" e "aos outros"?

Na frase "Proteja-se a si e aos outros" usamos "a si" porque o pronome pessoal reflexo "si" vem acompanhado da preposição "a". Logo, dizemos "Proteja-se a si" tal como dizemos "Convido-o a si". Mas qual é a lógica da segunda parte, "proteja aos outros"? Qual é o papel da preposição "a" contraída com "os outros" neste exemplo, sabendo que "proteger" não é regido pela preposição "a"?

Compreendo que digamos "Vi-o a si ontem", para reforçar o interlocutor, mas não percebo o sentido na frase que agora aparece em muitos cartazes. É que julgo que a frase "Proteja aos outros" não faz sentido.

Parece-me mais correto dizer: "Proteja-se e proteja os outros" ou talvez "Proteja-se a si e proteja os outros". Julgo que é a mesma em "Encontrei-te a ti e aos outros", pelo que deduzo que "a mim/ti/si e aos outros" seja uma fórmula que não depende do verbo que a antecede.

Obrigado pelo esclarecimento!

Resposta:

Na frase apresentada, a estrutura dos constituintes «a si» e «aos outros» justifica-se por se tratar de um caso de redobro do pronome.

O redobro do pronome é uma construção gramatical que permite reforçar um constituinte expresso sob a forma de um pronome clítico, como forma de o realçar ou focalizar. Por exemplo, na frase (1), o pronome os é reforçado pelo constituinte «a eles»:

(1) «O Rui chamou-os a eles.»

Note-se que o pronome os desempenha a função de complemento direto e o sintagma «a eles» desempenha exatamente a mesma função. Isto significa que a preposição a que introduz o constituinte não é sinal de complemento indireto, pois estamos perante a estrutura típica dos constituintes de redobro do pronome que corresponde a um pronome forte1, com acento tónico, precedido da preposição a.

Note-se que o redobro do pronome acaba por ser útil quando se pretende apresentar constituintes coordenados, porque os pronomes clíticos não têm a capacidade de se coordenarem entre si, como fica claro pela agramaticalidade da frase (2):

(2) «*O Rui chamou-os e as.»

Neste caso, será o redobro do pronome que permitirá a estrutura coordenada:

(3) «O Rui chamou-os a eles e a elas.»

No caso apresentado pelo consulente, aqui transcrito em (4), identificamos uma situação idêntica:

(4) «Proteja-se a si e aos outros.»

O pronome se desempenha a função de complemento direto, se...