Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Em «Completam-se hoje 42 anos sobre o dia em que regressei a Lisboa, depois de 10 anos de exílio […]. Pisar o chão de Lisboa no dia 2 de maio de 1974 foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida. […]», há inferências deíticas espaciais?

Se há, quais?

Agradecido

Resposta:

As inferências deíticas realizam-se quando há necessidade de preencher uma determinada referenciação de informação relacionada com locutor/interlocutor, espaço ou tempo. Estes processos cognitivos são desencadeados quando o texto não tem presente a informação relacionada, nesse caso, com a referenciação deítica.

Assumindo esta noção de inferência deítica, poderemos considerar que a segunda frase apresentada permite a recuperação de um deítico espacial equivalente a ali, uma vez que o locutor se coloca, através do seu enunciado, nesse espaço. A apresentação de uma referência espacial extratextual explícita permitirá, por inferência, recuperar o deítico ali.

Disponha sempre!

 

À volta da cassete e dos empréstimos
Dos galicismos que vieram para ficar

Como afirma a professora Carla Marques, «galicismos há que entraram, de forma mais ou menos discreta, na língua e foram ficando». A partir da palavra cassete, e a propósito do falecimento do seu inventor, o holandês Lou Ottens,  recordam-se alguns dos muitos casos de empréstimos ao francês.

Pergunta:

Gostaria ainda da vossa opinião sobre estas expressões:

– «Esta doença cursa com diarreia, vómitos...» («cursa com»?) Não será melhor «evolui com»? «Manifesta-se com...»?

«O Sr. João foi diagnosticado com melanoma» («o melanoma foi utilizado para diagnosticar»?) Não será melhor: «ao Sr. João foi-lhe diagnosticado um melanoma»?

Grato.

Resposta:

O verbo cursar pode ter um uso intransitivo (no qual não pede complementos), com o sentido figurado de “transcorrer, desenvolver-se, correr” (Dicionário Houaiss):

(1) «Segundo o assessor, as políticas cursavam satisfatoriamente.» (exemplo apresentado no Dicionário Houaiss)

No Dicionário Priberam, o verbo cursar é inclusive apresentado como termo médico, sendo usado com o sentido de “ocorrer ou desenvolver-se acompanhado de algo”. Aí, apresenta-se como exemplo a frase que transcrevemos em (2):

(2) «A malária pode cursar com graves complicações cerebrais, renais, pulmonares, hematológicas, circulatórias e hepáticas.»

Por esta razão, concluímos que a frase apresentada pelo consulente é possível e está prevista no dicionário como construção da área da medicina.

Já o verbo diagnosticar tem o significado de “fazer diagnóstico de” (Dicionário Houaiss). A sua construção semântica implica que existe um agente que executa a ação de identificar a existência de uma determinada situação, como em (3):

(3) «O médico diagnosticou a doença ao João.»

Uma vez que o verbo diagnosticar é transitivo, pode surgir numa construção passiva:

(4) «A doença foi diagnostica pelo médico ao João.»

Esta construção passiva pode ocorrer com omissão do agente da passiva:

(5) «A doença foi diagnosticada ao João.» = «Ao João foi diagnosticada a doença.»

O particípio do verbo diagnosticar pode também ser usado como particípio ...

Pergunta:

Em «a nobreza e pessoas de fortuna utilizavam adereços e substâncias aromáticas como forma de mascarar as suas imperfeições e criar uma imagem de sublimidade, beleza e até de semelhança a(os) deus(es).», a oração introduzida por «como» é subordinada adverbial comparativa ou final? Porquê?

Agradecido pelo ímpar apoio.

Resposta:

O constituinte «como forma de mascarar as suas imperfeições e criar uma imagem de sublimidade, beleza e até de semelhança a(os) deus(es)» inclui um grupo nominal que tem a função de modificador do grupo verbal. Este apresenta, no seu interior, uma oração com a função de complemento do nome.

Tradicionalmente, as orações introduzidas pela conjunção como são classificadas como subordinadas adverbiais comparativas.

No entanto, alguns gramáticos têm vindo a propor que este tipo de orações seja classificado como oração subordinada adverbial de modo. Entre os argumentos apresentados para justificar esta classificação, encontra-se o facto de estas orações surgirem na mesma posição que um advérbio de modo:

(1) «As pessoas usam as máscaras como lhes ensinaram.» = «As pessoas usam as máscaras mal.»

Não obstante, não é esta a situação gramatical que se encontra na frase apresentada pelo consulente, pois a conjunção como não introduz, neste caso, uma oração, mas antes um grupo nominal, que tem o nome forma como elemento central. Apresentamos, em baixo, a frase dividida de acordo com as funções sintáticas dos seus diferentes constituintes:

(2) «[A nobreza e pessoas de fortuna]sujeito [utilizavam [adereços e substâncias aromáticas]complemento direto [como forma [de mascarar as suas imperfeições e criar uma imagem de sublimidade, beleza e até de semelhança a(os) deus(es)]complemento do nome]modificador do verbo]predicado

Como se pode observar, a oração infinitiva que a frase inclui não se relaciona diretamente com o verbo, mas sim com o nome forma, assumindo a função de complemento desse nome.

Disponha sempre!

Pergunta:

Gostaria de saber qual o motivo que leva a que raramente veja exemplos de orações coordenadas explicativas introduzidas por porque.

Tenho-me deparado sempre com exemplos onde consta pois. Por outro lado, também raramente vejo exemplos de orações subordinadas causais introduzidas por pois.

Em conversa com colegas, dizem-me «Os miúdos não as sabem distinguir se utilizarmos para os dois exemplos». Ora, sabendo nós que cada vez mais os alunos têm dificuldade em interpretar, creio que seria conveniente, desde cedo, fazê-los contactar com as diferentes hipóteses. Isto é como o falar/o oral. Cada vez mais ouço (inclusive a professores) «Eu já "falei" isso», «Eu dei "a ele"».

Acredito que, se não utilizarmos as palavras, no contexto correto, qualquer dia deixamos de ter esta maravilhosa (consciente de que também difícil) língua que é o português.

Resposta:

O facto de nem sempre se assinalar a conjunção porque como introdutora de orações coordenadas explicativas parece ter lugar sobretudo em contexto escolar não universitário e estará relacionado com a procura de uma simplificação dos fenómenos gramaticais, de forma a auxiliar o estudo do aluno.

Na verdade, as orações coordenadas explicativas podem ser introduzidas pelas conjunções pois, porque, que e porquanto. Não obstante, a conjunção pois é frequentemente assinalada como prototípica, dado ter a capacidade de aparecer em inúmeras possibilidades de coordenação explicativa. Por seu turno, a conjunção porque (e também a conjunção que) apresenta, em algumas coordenadas explicativas, um comportamento menos claro, que a pode situar, do ponto de vista sintático, entre a subordinação e a coordenação. A título de exemplo, a orações explicativas introduzidas por porque (e por que) não admitem anteposição, o que acontece também com as orações introduzidas por pois:

(1) «Levanta-te, pois vai chover!» vs. «*Pois vai chover, levanta-te!»

(2) «Levanta-te, porque vai chover!» vs. «*Porque vai chover, levanta-te!»

Não obstante, ao contrário do que acontece com as orações introduzidas por pois, as orações explicativas introduzidas por porque admitem a colocação do pronome em posição pré-verbal:

(3) «Ele vai ter boas notas, pois emprestei-lhe os meus apontamentos.» vs. «*Ele vai ter boas notas, pois lhe emprestei os meus apontamentos.»

(4) «Ele vai ter boas notas, porque emprestei-lhe os meus apontamentos.» vs. «Ele vai ter boas notas, porque lhe emprestei os meus apontamentos.»

Estes são, todavia, dom...