Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «De manhã, fomos transportados em caleche e visitámos o Taj Mahal» (Público, 21 de julho de 2012), o constituinte «em caleche» desempenha a função sintática de complemento oblíquo?

Resposta:

O constituinte «em caleche» desempenha na frase apresentada a função de complemento oblíquo.

A questão colocada pela consulente convoca a distinção entre complemento oblíquo e modificador do grupo verbal. Um dos testes que poderá ser utilizado para, neste contexto, identificar a função do constituinte é a construção pseudoclivada. Esta assenta na estrutura «O que o SUJEITO fez foi SINTAGMA VERBAL», como se observa em (1), frase adaptada, e (1a):

(1) «Nós fomos transportados em caleche.»

(1a) «O que nós fizemos foi ser transportados em caleche.»

Esta construção mostra que «ser transportados em caleche» constitui o sintagma verbal, mas é possível focalizar apenas o verbo e os seus complementos, colocando o modificador antes de «foi». Observe-se a manipulação da frase (2/2a):

(2) «O João cantou esta música em Lisboa.»

(2a) «O que o João fez em Lisboa foi cantar esta música.»

O facto de o constituinte «em Lisboa» poder ser colocado antes de «foi» mostra que se trata de um modificador, que pode, portanto, ser afastado do verbo.

Se aplicarmos o mesmo teste à frase em análise, verificamos que gera uma construção inaceitável:

(1b) «*O que nós fizemos em caleche foi ser transportados.»

O resultado da construção pseudoclivada aponta para o facto de o constituinte «em caleche» ter a função sintática de complemento oblíquo, estando o verbo transportar a ser usado como um verbo principal transitivo direto e indireto.

Disponha sempre!

...

Pergunta:

Se possível, gostaria de solicitar as seguintes informações:

1) Como dividir e classificar as orações constantes do período

«Enquanto contava histórias, a mulher, cercada de crianças inquietas, recordava-se da infância vivida na fazenda, por onde corria livremente, tocando o gado, alimentando a criação e plantando florezinhas no jardim para ocupar o tempo que parecia não ter fim.»

2) Já ouvi as designações de oração matriz, base ou nuclear para a chamada de principal, no período composto por subordinação. Essas designações são empregadas por quais estudiosos e em quais obras?

Agradeço antecipadamente por qualquer esclarecimento!

Resposta:

A frase apresentada inclui as seguintes orações:

  • «Enquanto contava histórias» - oração subordinada adverbial temporal;
  • «a mulher recordava-se da infância vivida na fazenda» - oração subordinante;
  • «cercada de crianças inquietas» - oração subordinada (não finita) participial;
  • «vivida na fazenda»1 - oração subordinada (não finita) participial;
  • «por onde corria livremente» - oração subordinada adjetiva relativa explicativa;
  • «tocando o gado» - oração subordinada (não finita) participial;
  • «alimentando a criação» - oração subordinada (não finita) participial e coordenada assindética da oração anterior
  • «e plantando florezinhas no jardim» - oração subordinada (não finita) participial e coordenada copulativa da anterior;
  • «para ocupar o tempo que parecia não ter fim» - oração subordinada adverbial final;
  • «que parecia não ter fim»2 - oração subordinada adjetiva relativa restritiva.  

 No que respeita às designações dadas à chamada oração subordinante, importa referir que, normalmente, são expressões sinónimas. As diferenças de designação ficam a dever-se, normalmente, ao quadro teórico a que pertence a análise desenvolvida. Entre os termos referidos pela consulente, foi possível identificar o uso da expressão «frase matriz» por João Andrade Peres e Telmo Móia, em Áreas Críticas da Língua Portuguesa (Lisboa, Editorial Caminho, 1995, p. 24): «[...] as orações subordinadas são parte integrante da frase total, onde parecem "encaixadas". Recorrendo a terminologia também corrente, usaremos a designação de frase matriz para as frases tomadas na sua totalidade [...].» (ver esta

Pergunta:

Eis que tenho de fazer uma indagação... Tal pergunta é relativa ao livro O Alienista, escrito por Machado de Assis.

Não depreendi o sentido da expressão «...não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra...». Podem me elucidar esta frase?

No vocábulo, «alcançar dele» e, do mesmo modo, a conjugação do verbo «ficasse» (modo subjuntivo), não compreendi o porquê do emprego...

Que dizem?

Obrigado.

Resposta:

O excerto apresentado integra a seguinte frase: «Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.» (Machado de Assis, O Alienista)

Nesta frase, o verbo alcançar está a ser usado como verbo transitivo direto e indireto com o sentido de «ter êxito nos esforços envidados para a conquista de (objeto ou objetivo)» (Dicionário Houaiss).

Assim, o narrador pretende afirmar que o rei envidou esforços para que ele [o médico] ficasse em Coimbra ou em Lisboa. Contudo, não foi bem-sucedido.

O recurso ao modo conjuntivo na forma ficasse está relacionado com a expressão de uma situação não factual, mas hipotética. 

Disponha sempre!

Revanche e Desforra
Duas palavras em conflito

O recente encontro futebolístico entre as seleções francesa e portuguesa trouxe ao espaço da comunicação social as palavras revanchedesforra. Se de uma segunda oportunidade se trata, desforra deveria ter sido o termo adotado, todavia, foi de revanche que muito se falou. Este é o motivo da crónica da professora Carla Marques, emitida no programa Páginas de Português, na Antena 2, do dia 18 de outubro de 2020.

Pergunta:

a) «Certifique-se de que os dados do seu passaporte possam ser lidos de forma clara e de que a imagem não contenha partes desfocadas ou afetadas por reflexos»;

ou b) «Certifique-se de que os dados do seu passaporte podem ser lidos de forma clara e de que a imagem não contém partes desfocadas ou afetadas por reflexos»?

Apesar de já ter lido uma resposta sobre este tema [...], confesso que as frases acima me deixam um pouco confuso quanto à possibilidade de utilização do conjuntivo, uma vez que o elemento de «certeza/realidade/facto» não é claro:

1 – A ação que condiciona a boa leitura do documento ainda não foi realizada;

2 – Subentende-se, com facilidade, que o leitor terá de fazer mais do que «certificar-se de que». Nomeadamente, terá de se esforçar por obter uma digitalização correta do passaporte. Ou seja, a expressão «certificar-se de que» comporta um significado mais abrangente do que um simples «verifique se está tudo bem»;

3 – Existe sempre a possibilidade de o leitor não seguir o conselho (por esquecimento, etc.).

Os elementos acima remetem-nos para outra explicação: «o emprego do subjuntivo também indica que uma ação, ainda não realizada, é concebida como subordinada a outra, expressa ou subentendida, de que depende diretamente». Por conseguinte, sinto-me tentado a considerar que a utilização do conjuntivo na frase a) é correta.

Estarei equivocado?

Grato pela atenção.

Resposta:

Com o verbo certificar ambos os modos verbais são possíveis, o que terá consequências no plano dos valores veiculados, que estão relacionados com a crença que se expressa. Acrescente-se, não obstante, que a frase apresentada pelo consulente revela especificidades que parecem introduzir limitações ao uso do modo conjuntivo. 

A seleção do modo verbal a utilizar em orações subordinadas completivas está, normalmente, dependente do valor de crença que se associa à realidade descrita na oração subordinada. Assim, usa-se o modo indicativo quando há uma forte crença na verdade da frase, o que, no caso apresentado, significa que se acredita que a leitura dos dados vai efetivamente ter lugar:

(1) «Certifique-se de que os dados do seu passaporte podem ser lidos de forma clara.»

O grau de crença na verdade da situação descrita na oração subordinada é similar ao grau de crença expresso na frase (2):

(2) «Ele acredita que o João partiu esta garrafa.»

Quando se seleciona o modo conjuntivo, expressa-se um grau de crença menor na verdade da situação escrita na oração subordinada, tanto em (3) como em (4):

(3) «Certifique-se de que os dados do seu passaporte possam ser lidos de forma clara.»

(4) «Ele acredita que o João tenha partido a garrafa.»

Na frase (3), o locutor não sabe se os dados do passaporte serão lidos, enquanto na frase (1), ele acredita que serão efetivamente lidos.

Já a segunda oração completiva coloca outros problemas uma vez que descreve uma realidade factual: «a imagem não contém partes desfocadas ou afetadas por reflexos». Neste caso, não parece ser possível jogar com o grau de crença, pelo que a frase correta será:...