Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Eu sempre aprendi que uma locução verbal é formada por um verbo auxiliar (conjugado pelo sujeito) + um verbo principal (sempre na forma nominal):

• As pessoas |devem ser| felizes.

Porém, com a prática de ler vários artigos, percebi a existência de "locuções verbais" com 3 ou 4 verbos.

• As casas devem ser feitas em um ano.

• Você pode querer tentar ser alguém.

As minhas dúvidas são:

1. Esses verbos podem ser chamados de locuções verbais?

2. Se sim, como seria a classificação desses 3/4 verbos em relação a "auxiliar e principal"?

«Você poderia ter cantado mais.»

Obrigado.

Resposta:

É possível assinalar a existência de locuções verbais que incluem mais do que um verbo auxiliar.

Segundo Cunha e Cintra, «Os conjuntos formados de um verbo auxiliar com um verbo principal chamam-se locuções verbais. Nas locuções verbais conjuga-se apenas o auxiliar, pois o verbo principal vem sempre numa das formas nominais: no particípio, no gerúndio, ou no infinitivo pessoal.» (Nova Gramática do Português Contemporâneo. Edições Sá da Costa, p. 393)

Assim, de acordo com o que ficou exposto, as locuções verbais caracterizam-se por constituírem um grupo verbal que funciona como se se tratasse de um só verbo. Por essa razão, em (1) não estamos perante uma locução verbal:

(1) «A Rita decidiu ler durante a tarde.»

Neste caso particular, decidir e ler são dois verbos plenos, pelo que não formam uma locução verbal, que se caracteriza por funcionar como um só verbo. Na frase (1), ler é complemento direto do verbo nuclear da frase decidiu, que, por seu turno, não tem estatuto de verbo auxiliar.

Refira-se, todavia, que é possível identificar situações em que a locução verbal inclui mais do que um verbo auxiliar. É o que se verifica em (2):

(2) «O João deixou de ir participar no programa.»

Na frase (2), o verbo participar corresponde ao verbo central, enquanto deixar e ir

A calamidade e o estado de calamidade
Significados em tempos de covid-19

«Para os portugueses, esta situação de calamidade (declarada pelo Governo a partir das 0h00 do dia 15 de outubro de 2020) é um retorno a uma situação conhecida. Não obstante, desta feita, trata-se de um regresso a uma situação, mas não a repetição de uma situação», escreve a professora Carla Marques, num contexto em que explora ainda a pertinência do termo calamidade nos tempos que vivemos.

Pergunta:

Quero saber se se pode dizer arbitrariamente «quanto mais, melhor», e «quão mais, melhor», sendo que quão é usado antes de adjetivos e advérbios.

Podemos pensar em mais como um advérbio?

Esta pergunta vale tanto para quanto e quão como para tanto e tão.

Obrigado desde já pela vossa atenção.

Resposta:

A frase «Quão mais, melhor» é incorreta, não podendo funcionar como alternativa a «Quanto mais, melhor». 

Os operadores quanto e quão podem ser usados em construções comparativas, surgindo no segundo termo de comparação. O advérbio quão é, todavia, sentido como mais literário e é usado sobretudo nas situações em que se comparam graus de propriedades distintas da mesma entidade:

(1) «Ele estuda tanto quanto pode.»

(2) «Ele é tão estudioso quão inteligente.»

Na estrutura apresentada pelo consulente, estamos perante um caso de oração proporcional1, que, segundo Bechara, é uma construção que pode ser introduzida pelos seguintes operadores: «à medida que, à proporção que, ao passo que, tanto mais... quanto mais, tanto mais... quanto menos, tanto menos... quanto mais» (Moderna Gramática Portuguesa. Nova Fronteira, p. 412). A listagem apresentada não contempla, portanto, a construção «quão mais». Acresce-se, ainda, que uma pesquisa no Corpus de Português, de Mark Davies não devolveu exemplos de usos de quão em construções proporcionais. Assim, a situação aponta para a impossibilidade da construção «*quão mais», que não poderá, portanto, substituir «quanto mais».

Refira-se também que o exemplo apresentado pelo consulente será elítico na medida em que esta construção indica tipicamente uma correlação entre duas escalas, que neste caso ficam su...

Pergunta:

Em "Não abrirei mão de meus sonhos", qual é a predicação verbal. Seria "abrir" um VTDI (verbo transitivo direto e indireto), com OD (objeto direto) «mão» e OI (objeto indireto) «de meus sonhos»?

Obrigado.

Resposta:

A expressão «abrir mão» com o sentido de ‘renunciar; desistir de algo’ é uma expressão idiomática formada por uma locução fixa, o que significa que o nome mão não poderá ser substituído por outro item lexical.

Podemos considerar que o verbo abrir é acompanhado por um complemento direto (mão) e por um complemento oblíquo / complemento relativo («de meus sonhos»).

Embora selecione complementos, o verbo abrir, neste caso particular, não revela todas as potencialidades de verbo pleno, pelo que não poderemos afirmar que é um verbo transitivo direto e indireto típico. Está, antes, mais próximo da natureza de um verbo leve, pois seleciona um constituinte nominal para com ele formar uma estrutura complexa que designa uma realidade que poderia ser verbalizada por um verbo simples.

Disponha sempre!

Pergunta:

«A novidade, ainda em fase de desenvolvimento e liberada em forma de preview para um pequeno grupo de usuários do programa Insider, vai permitir a configuração de perfis.»

O trecho entre vírgulas é uma oração subordinada adjetiva explicativa ou um aposto?

Se esse trecho fosse introduzido por um pronome relativo («a qual ainda está em fase de desenvolvimento e liberada em forma de preview para um pequeno grupo de usuários do programa Insider», por exemplo), haveria alguma mudança de sentido ou na análise sintática?

Resposta:

Para responder à questão colocada, importa, antes de mais, esclarecer alguns aspetos que não podem ser considerados no mesmo plano de análise.

Assim, quando falamos de oração subordinada adjetiva relativa, estamos a designar a natureza de um constituinte. Neste campo de análise, falaremos de orações adverbiais, de orações substantivas ou de sintagmas nominais ou preposicionais, entre outros.

Quando falamos de aposto, encontramo-nos no plano da análise da função sintática que um dado constituinte desempenha na frase. Entre as funções sintáticas, consideramos o sujeito, o complemento direto, o predicativo do sujeito, entre outras.

Assim, na frase apresentada, o constituinte «em fase de desenvolvimento e liberada em forma de preview para um pequeno grupo de usuários do programa Insider» é composto por um sintagma preposicional («em fase de desenvolvimento») coordenado com uma oração participial («liberada em forma de preview para um pequeno grupo de usuários do programa Insider»).

Este constituinte incide sobre um nome nuclear, o constituinte «novidade», dando informações sobre ele. Por essa razão estamos perante um constituinte com a função sintática de aposto (ou de modificador do nome apositivo, de acordo com a terminologia usada no sistema de ensino português).

Se a frase apresentada tivesse a seguinte realização:

(1) «A novidade, a qual ainda está em fase de desenvolvimento e que será liberada em forma de preview para um pequeno grupo de usuários do programa Insider, vai permitir a configuração de perfis.»

o constituinte «a qual ainda está em fase de d...