Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora
Doença e cura
Palavras que dominam quando o mundo ultrapassa um milhão de mortos por covid-19

doença, que domina as consciências do mundo atual, exige que se procure o seu complemento, cura, vista como salvação. Numa altura em que o mundo ultrapassa um milhão de mortos por covid-19, esta é a crónica da professora Carla Marques, emitida no programa Páginas de Português, na Antena 2, do dia 4 de outubro de 2020.

Pergunta:

Apesar de já ter lido por aqui que há várias exceções às regras de concordância entre sujeito e verbo, gostava de esclarecer se os casos que exponho abaixo – em que o sujeito (que remete para um coletivo) está no singular e o verbo no plural – estão efetivamente errados e se o correto seria o verbo estar no singular (ficou infetado, está em quarentena, está a ser procurado)

«Um total de 35 médicos ficaram infetados com covid-19»

«Um total de 340 pessoas estão em quarentena»

«Um grupo de 30 migrantes estão a ser procurados»

Isto porque, embora não se trate de expressões numéricas, como na frase «Mil euros não será demais?», os sujeitos remetem para a ideia de coletivo. Nestes casos, pode o sujeito estar no singular e o verbo no plural, uma vez que se refere ao número de pessoas?

A minha dúvida aplica-se, sobretudo, ao verbo ser.

Obrigada

Resposta:

Nas frases em análise, é aconselhável que o verbo seja flexionado na 3.ª pessoa do singular (verbo ser ou qualquer outro).

Nos casos apresentados, o sujeito é sempre composto por duas expressões separadas pela preposição de, funcionando a primeira como núcleo do sintagma nominal.

De acordo com esta análise, e de um ponto de vista estritamente sintático, a concordância deve efetuar-se com o primeiro elemento porque este é, como se disse, o núcleo do sintagma:

(1) «Um total de 35 médicos ficou infetados com covid-19»

(2) «Um total de 340 pessoas está em quarentena»

(3) «Um grupo de 30 migrantes está a ser procurados»

Expressões como «Um grupo de» ou «Um conjunto de» são consideradas por Peres e Móia nomes de referência dependente. Este funcionam de forma auxiliar na definição de entidades grupais1, devendo surgir em construções de concordância no singular (com também se explica aqui).

Ao contrário, expressões que referem quantidade, como «um milhar de», «metade de» ou «a maioria de», já aceitarão a concordância sintática (4) com o núcleo do sintagma, que determina o uso da 3.ª pessoa do singular, ou a concordância semântica (ou silepse) (5) com o segundo nome, o que autoriza o uso da 3.ª pessoa do plural:

(4) «A maioria dos alunos votou

(5) «A maioria dos alunos votaram

Disponha sempre!

 

Pergunta:

Em vez de «o piano estava ali arrumado junto à parede» pode dizer-se «o piano estava para ali arrumado à parede», tendo no segundo caso o sentido de «ali deixado...» (esquecido, abandonado...) ?

Resposta:

Os advérbios de lugar podem expressar valores diversificados.

Nalguns casos, os advérbios associam-se a outras palavras formando expressões fixas. É o caso da sequência «para ali», que pode ser usada com um valor locativo indefinido, equivalente ao advérbio algures:

(1) «O livro está para ali.» (= algures)

No caso da frase apresentada pela consulente, a expressão «para ali» parece apontar não tanto para uma indefinição espacial, uma vez que se delimita o espaço junto à parede como localizador do piano, mas para uma valoração negativa do local onde o piano foi deixado.

Esta valoração pode ser entendida como sinónima dos adjetivos esquecido, abandonado.

Disponha sempre!

Pergunta:

Numa aula, surgiu a dúvida em relação à classificação de uma das orações da seguinte frase:

«A Antonieta, uma rapariga que conheci no parque, é simpática.»

A questão prende-se com a oração entre vírgulas.

Se fosse «que conheci no parque», seria uma subordinada adjetiva relativa explicativa, mas, neste caso, como a poderei classificar?

Agradeço a ajuda.

Resposta:

O constituinte «uma rapariga que conheci no parque» tem a função de modificador do nome apositivo.

A questão que coloca envolve vários níveis de análise, uma vez que dentro dos constituintes principais também existe função sintática, como se observa na apresentação esquemática da frase, na qual os parênteses retos representam constituintes com função sintática (sem levar a análise à exaustão):

(1) «[A Antonieta, [uma rapariga [que conheci no parque,]] [é [simpática]].»

Assim sendo, o constituinte «uma rapariga que conheci no parque» incide sobre o grupo nominal «A Antonieta» com a função de modificador do nome apositivo.

Já o constituinte «que conheci no parque», que é interno ao grupo nominal com função de modificador apositivo, incide sobre o grupo nominal «a rapariga» com a função de modificador do nome restritivo.

Disponha sempre!

Pergunta:

Se o cotexto é a divisão do texto em partes para explicação do próprio contexto, podemos nos referir à palavra que se quer destacar, para ser analisada num contexto (frase, oração, período), como sendo o cotexto?

O cotexto pode ser visto como a «menor unidade» dentro de um texto, contexto?

Resposta:

Com efeito, nalgumas fontes encontramos a definição de cotexto como correspondendo à divisão do texto em partes. Todavia, sem outra explicação, esta definição pode conduzir a interpretações erróneas sobre o conceito em causa.

O cotexto1 refere a relação que as unidades linguísticas estabelecem dentro do texto de forma a contribuir para a fixação da significação de uma dada unidade. Por essa razão se afirma que o cotexto permite desencadear processos de desambiguação, estabelecendo relações intertextuais e intratextuais.

Observemos, por exemplo, a frase (1):

(1) «O João é filho da Maria.»

Neste caso, os nomes filho e Maria estabelecem uma relação cotextual, na medida em que ao relacionarem-se entre si contribuem para a criação de sentidos de dependência. Este facto permite também compreender por que razão não podemos considerar que uma unidade isolada é o cotexto.

Observe-se ainda que, em algumas posições teóricas, o cotexto é designado contexto verbal.

Já a noção de contexto tem a ver com a circunstâncias de produção do enunciado, que criam um efeito de indexicalidade, que se relaciona com o produtor, o tempo ou o espaço de produção, por exemplo. O termo contexto aponta também para as condições extralinguísticas de produção dos enunciados, incluindo as realidades extralinguísticas que o enunciado refere.

Como se pode concluir desta breve síntese, a proposta que a consulente faz é redutora e acaba por não incluir as características essenciais que cada conceito envolve.

 

1 Esta noção foi proposta...