Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber se posso utilizar o verbo estugar normalmente ou se é um verbo com alguma característica especial (verbo defetivo) que não possa ser conjugado em todas as pessoas/modos/tempos verbais.

Queria utilizá-lo para descrever a forma como um lagarto sobe um ramo apressadamente. Posso dizer «O lagarto estuga pelo ramo acima»?

Muito obrigada. Os meus parabéns a toda a equipa.

Resposta:

O verbo estugar pode ser usado no contexto apresentado pela consulente.

Este verbo pertence à 1.ª conjugação e conjuga-se em todas as pessoas e tempos/modos. Tem o significado de «caminhar rapidamente, aumentando as passadas» ou «incitar, estimular» (Dicionário Houaiss).

Uma pesquisa no Corpus de Mark Davies mostra-nos que, embora o verbo não tenha grande frequência de uso, tem usos na literatura:

(1) «Batia uma hora na torre quando o cónego, que vigiava a Praça pelo canto do olho, vendo passar Amélia, arremessou o jornal, saiu da botica sem dizer uma palavra e estugou o seu passo de obeso para a casa do tio Esguelhas» (Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro).

e, atualmente, na comunicação social:

(2) «As metas europeias, no âmbito do Europa 2020, apontam para uma média de 40% da população com este grau de ensino, e, embora a média europeia já esteja muito próxima deste patamar (há 13 países que já a atingiram), Portugal tem de estugar o passo para lá chegar – em apenas três anos terá de passar dos 34,6% para os 40%» (Jornal de Negócios, 26 de abril de 2017).

(3) «Uma jornada que só pecou – e o próprio queixou-se disso várias vezes, como se não fosse ele a ...

Pergunta:

Em «O Bernardo é o que mais trabalha», a oração «o que mais trabalha» é substantiva relativa com função de predicativo de sujeito?

Agradecido.

Resposta:

Com efeito, na frase apresentada, a oração subordinada substantiva relativa «o que mais trabalha» desempenha a função de predicativo do sujeito.

A frase apresentada pertence a um tipo particular de copulativas, as chamadas copulativas identificadoras. Estas visam identificar as propriedades que caracterizam determinado indivíduo ou realidade (cf. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1319). Estas copulativas são estruturas equativas, o que significa que tanto podem surgir com a ordem canónica SUJEITO + SER + PREDICATIVO do SUJEITO como com a ordem inversa PREDICATIVO do SUJEITO + SER + SUJEITO. Por esta razão, a dificuldade nestes casos passa pela identificação das funções desempenhadas pelos constituintes que compõem a frase. Para tal, existem dois testes que se podem aplicar no sentido de identificar o sujeito da frase: o teste da clivagem e o teste do redobro do sujeito.

Passemos, pois a aplica-los à frase apresentada pelo consulente:

(i) teste da clivagem: coloca o foco num elemento da frase; nas frases na ordem inversa não é possível colocar o foco no constituinte à esquerda do verbo:

O Bernardo é o que mais trabalha

(1a) «É o Bernardo que é o que mais trabalha?»

(1b) «*É o que mais trabalha que é o Bernardo?»

 (ii) teste do redobro do sujeito: neste test...

O que o feminismo e o nazismo (não) têm em comum
Da forma ao conceito

A aproximação entre o feminismo e o nazismo feita numa polémica cadeira de mestrado da Faculdade de Direito de Lisboa* justifica a reflexão da professora Carla Marques sobre o que estas palavras têm em comum e sobre o que as afasta.

 

*Cf. Faculdade de Direito abre “processo de inquérito” a professor que compara feminismo ao nazismo

Pergunta:

No português brasileiro, a junção da preposição com + pronome oblíquo si resulta em consigo. Apesar disso, é muito comum que as pessoas aqui utilizem "com si" em vez de consigo no dia a dia.

Por exemplo: «Seja mais paciente com si mesma», em vez de: «Seja mais paciente consigo mesma».

Gostaria de saber se ambas as formas estão corretas ou apenas uma delas é aceita, segundo a norma culta.

Obs. Sei que a língua portuguesa sofre muitas variações no Brasil em relação a Portugal, mas espero que apesar disso consigam me orientar sobre esse assunto!

Obrigada!

Resposta:

A construção «com si» não é aceitável, sendo apenas possível consigo

Tanto em Portugal como no Brasil, quando a preposição com coocorre com o pronome pessoal oblíquo, tem lugar uma contração que assume uma das seguintes formas: comigo, contigo, consigo, connosco/conosco, convosco.

Como adverte Evanildo Bechara, não se deve dizer *com mi, *com ti, *com si, *com nós, *com vós (cf. Moderna Gramática Portuguesa. Ed. Nova Fronteira, pp. 138-139).

Este autor refere, não obstante uma exceção que permite o uso de «com nós» e «com vós» nas mesmas situações em que se usa connosco/conosco e convosco: «Empregam-se, entretanto, com nós e com vós, ao lado de conosco e convosco, quando estes pronomes tônicos vêm seguidos ou precedidos de mesmos, próprios, todos, outros, ambos, numeral ou oração adjetiva, a fim de evidenciar o antecedente:

«Há um céu para nós outros na imortalidade das nossas obras terrenas.» [JR.2, 185].

Com vós todos ou com todos vós.

Com vós ambos ou com ambos vós.» (idem, p. 139)

Disponha sempre!

 

*assinala a incorreção da forma.

Pergunta:

Epiphânio Dias, na sua Sintaxe histórica, pág. 277 [2.ª edição, 1933], considera a conjunção que seguida de não como causal com o valor de e, mas não alcancei o porquê; quer-me parecer que «que não» nos contextos indicados pelo autor equivale a exceto.

Pode classificar-se ainda hoje o que que aparece nesse contexto como causal, como pensa Epiphânio Dias? Pode ver-se nesse que um que relativo substituível por o qual?

Obrigado.

Resposta:

Epiphânio da Silva Dias refere que «parece ter valor causal a conjuncção que (seguida de não) empregada nos contrastes com a significação aparente de e» (Sintaxe histórica portuguesa, p. 277).

Quando o autor menciona a «significação aparente de e», estará a fazer alusão ao facto de a conjunção que funcionar como a conjunção copulativa, o que se verifica até pela possibilidade sintática de aquela substituir que, como se observa na citação d’Os Lusíadas, apresentada como exemplo pelo autor:

(1) «[…] maravilha / Feita de Deus, que não de humanos braços» (VIII, 24)

(2) «[…] maravilha / Feita de Deus, e não de humanos braços»

Como é sabido, a conjunção copulativa e tem a capacidade de veicular diferentes valores de nexo, que vão da adição, à temporalidade ou ao contraste, por exemplo. Parece ser a estes valores que o autor se refere quando afirma que a conjunção que é empregada nos contrastes, realçando, assim, o valor de contraste que se estabelece entre os dois membros conectados pela conjunção. Com efeito, na frase apresentada, estabelece-se um contraste entre «Deus» e «humanos braços».

A este valor contrastivo, Epiphânio Dias acrescenta ainda, adotando uma posição modalizada pelo verbo parecer, um valor causal, o que significaria que no lugar de que poderia surgir, por exemplo, a conjunção porque:

(3) «[…] maravilha / Feita de Deus, porque não de humanos braços»

Esta interpretação, s...