Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual o significado da expressão «ele gosta de ficar tisicando»?

Resposta:

No contexto em questão, tisicar significa «importunar».

Trata-se de um verbo, derivado de tísico, «que sofre de tísica, tuberculoso», que na sua origem significa «tornar/ficar tísico» e  se usa também figuradamente nas aceções de «importunar, mortificar, arreliar» (cf. InfopédiaPriberam e dicionário Aulete).

Regista-se também o sinónimo entisicar (cf. ibidem).

Pergunta:

Pode considerar-se que existe rima entre as palavras vivida e pensada?

Resposta:

A relação sonora que se possa estabelecer entre vivida e pensada não chega a constituir uma rima. Com feito, falta um elemento importante, que é ocorrer o mesmo som vocálico a partir da última sílaba tónica dos versos que rimam.

Por exemplo, em duas estrofes do poema do jogral medieval Martim Codax:

Eno sagrado, en Vigo,
bailava corpo velido:
amor hei!

En Vigo, no sagrado,
bailava corpo delgado:
amor hei!

na primeira estrofe, a rima estabelece-se entre Vigo e velido, palavras com as mesmas vogais finais – i-o –, mas consoantes diferentes – g-d. Na segunda estrofe, a terminação é igual: -ado. Estes caso mostram como a relação rimática é determinada pela correspondência vocálica, a partir da vogal que ocorre na última sílaba tónica do verso. Com as palavras graves, a consoante no meio pode ser diferente (rima toante, como na primeira estrofe acima) ou igual (rima consoante, como na segunda estrofe).

Sendo assim, infere-se que vivida e pensada não são palavras que rimem, justamente porque as vogais tónicas são diferentes. Acrescente-se que E. Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, 2003, p. 640) define rima tendo em conta a identidade vocálica nas últimas sílabas dos versos de um poema: «Chama-se rima a igualdade ou semelhança de sons pertencentes ao fim das palavras, a partir da sua última vogal tônica.»

Pergunta:

Gostaria de saber para que topónimos ucranianos devemos ainda usar formas históricas ou aportuguesamentos.

Nas notícias temos visto recorrentemente falar-se de Kharkiv e Lviv, por exemplo. Contudo, vêem-se esporadicamente também os exónimos Carcóvia e Leópolis. Serão estes ainda válidos e recomendáveis? Que outras formas portugueses existem?

Wikipédia e outros lugares da Internet registam por exemplo as cidades de:

Sebastopol (Sevastopol) – ou será Sebastópolis?

Quérson (Kherson)

Vinítsia (Vinnytsia)

Zaporíjia (Zaporizhzhia)

Odessa (Odesa)

Jitomir (Zhytomyr)

Estas três últimas talvez simples transcrições, bem como as regiões da Volínia (Volyn'), Kirovogrado (Kirovohrad) – ou deveria ser "Quirovogrado"? –, Transcarpátia (Zakarpattia) – ou "Transcarpácia"? –, Galícia (Halychyna), Podólia (Podil...

Resposta:

Entre os nomes geográficos ucranianos que são mencionados na questão, identificam-se duas situações:

– Nomes que têm forma portuguesa, com ou sem tradição ou uso – são, portanto, exónimos1, isto é, nomes formados numa língua que não naquelas que se usam nos territórios onde os topónimos ocorrem: Carcóvia, Leópolis, Quieve, Galícia.

– Nomes transcritos ou transliterados conforme normas internacionais ou normas emitidas por autoridades locais e reconhecidas internacionalmente – são endónimos, ou seja, nomes locais que são romanizados: Kharkiv/Kharkov, Kyiv/Kiev, Lviv/Lvov.

Sobre os nomes em questão, importa salientar que não há ainda para o português critérios próprios padronizados para a transliteração de nomes do russo ou do ucraniano. Sendo assim, recorre-se às formas romanizadas conforme normas internacionais, as quais acusarão eventualmente a interferência de soluções provenientes de línguas hegemónicas (inglês, francês, espanhol).

Sobre as formas adotadas nos artigos da Wikipédia, deve notar-se que, por válidos que sejam, não têm o reconhecimento formal e generalizado que seria necessário. Deste modo, sem prejuízo das formas portuguesas propostas numa lista de exónimos relativos à Ucrânia (aqui), podem também empregar-se as transliterações internacionais, o que significa que neste ponto há que tomar decisões e optar pela forma do topónimo de uma das línguas dos Estados em conflito – ucraniano ou russo –, muito embora a Ucrânia tenha importante população russófona.

Assim, pela mesma ordem por que são mencionados os topónimos na pergunta, apresentam-se listados os endónimos ucranianos romanizados pelo sistema e quadro de transliteração aprovados pelo gabinete de ministros...

Pergunta:

Estou a traduzir um livro do árabe para o português e pretendo fazer um quadro que possa aportuguesar ou facilitar o alfabeto árabe transliterando.

Só que estou em dúvida sobre se coloco como tema «sistema de transcrição» ou «transliteração fonética» ou «transcrição fonética»?

Enfim, qual é o termo profissional usado nisso? E qual é a diferença entre transcrição e transliteração?

Resposta:

A transcrição constitui uma representação de sons e, portanto, recorre geralmente aos símbolos do Alfabeto Fonético Internacional (AFI ou International Phonetic Alphabet – IPA).

A transliteração faz uma correspondência entre os elencos de carateres de dois sistemas de escrita (alfabetos ou similares) diferentes.

Por exemplo, pegando na palavra portuguesa arrais, com origem no árabe رئيس, através da associação do artigo الرئيس, é possível obter:

a) uma transcrição: arra'is;

b) uma transliteração: al ra'is

Em a), trata-se de uma transcrição, porque se procura reproduzir a realização fonética de palavras, neste caso uma sequência formada pelo artigo al associado à palavra ra'is. Entre estas opera-se a assimilação da consoante /l/ à consoante vibrante /r/, uma das chamadas consoantes solares1 do árabe que desencadeiam esse fenómeno.

Em b), apresenta-se uma transliteração, fazendo-se a correspondência dos carateres árabes com os caracteres latinos, sem atender ao fenómeno da assimilação. Por outras palavras, a letra lāmل  – é transposta no alfabeto latino como a letra l, sem atender ao referido fenómeno fonético.

Em português ou numa das suas variedades, não existe ainda um sistema de transliteração estável e generalizado. Quanto às transcrições, atualmente, tende-se a utilizar os símbolos do AFI.

 

1 Consoante solar: «diz-se de qualquer das consoantes da língua árabe que, ao figurarem no início de uma palavra, determinam a assimilação do l do artigo definido (al/ el) antecedente (p.ex., a consoante [n], como em nahru 'rio', annahru 'o rio')» (Dicionário Houais...

Pergunta:

A seguinte situação é-me um bocado confusa, pois lamentavelmente tenho dificuldade em parar de pensar de acordo com a gramática de um dos meus idiomas maternos, o espanhol.

No espanhol, é possível construir a frase imperativa «apriétense las manos!» ou «dense las manos!», pois no espanhol, estamos a mandar fazer essa ação reciprocamente.

Em português, não entendo porque só há de ser «apertem as mãos» e «deem as mãos» (versus estas supostas frases erradas segundo os nativos de português: “apertem-se as mãos” e “dêem-se as mãos.) Agradeço antecipadamente a vossa resposta.

Resposta:

É uma característica do português, que não admite o pronome reflexo, mesmo que recíproco e com função de indireto, quando o verbo já seleciona um objeto direto.

Para exprimir a ideia de reciprocidade, que pode estar implícita numa frase como «apertem as mãos», é necessário acrescentar «uns aos outros» (também possível «uns dos outros»):

(1) «apertem/deem as mãos uns aos outros» (ou «apertem/deem as mãos uns dos outros»)

Note-se que a referida possibilidade do castelhano se reflete em casos de não reciprocidade: «me comí una manzana». Em português, na tradução correspondente, não há tal estrutura: «comi uma maçã» ou «comi uma maçã toda/inteira».