Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Estou com uma dúvida relativa a dois substantivos, um concreto e um abstrato que estão nas seguintes frases:

1. «O regulamento do imposto está disponível via Internet.»

2. «A regulamentação do imposto foi feita pelo legislador.»

Nessas frases, o termo «do imposto» na primeira frase e na segunda frase é complemento nominal, já que os termos regulamento e regulamentação derivam do verbo regulamentar? Ou na primeira é adjunto adnominal porque o termo regulamento é um substantivo concreto? Tenho mais frases como exemplo da minha dúvida:

3. «O regimento do tribunal de justiça foi feito pelo juiz» (verbo reger).

4. «As normas do/para o trânsito devem ser seguidas» (verbo normatizar).

5. «Regras para/do combate às drogas devem ser respeitadas» (verbo regrar).

Resposta:

Todos os casos que apresenta são de substantivos que têm um complemento nominal porque todos pressupõem frases em que tais complementos são sujeitos ou objetos diretos:

1. «o regulamento do imposto» = «regulam o imposto»/«o imposto está regulado»;

2. «a regulamentação do imposto» = «regulamentam o imposto»/«o imposto está regulamentado»;

3. «o regimento do tribunal» = «regem o tribunal»/«o tribunal é regido»;

4. «as normas do trânsito» = «o trânsito segue normas»;

5. «as regras do combate às drogas» = «o combate às drogas segue regras».

Note que, ao contrário de regulamento, regulamentação e regimento, as palavras norma e regra não são substantivos deverbais (isto é, não são derivados de normatizar e regra).

Assinale-se também que o caráter abstrato ou concreto do referente dos substantivos em questão não é relevante para a identificação do complemento nominal, como se pode verificar por outro exemplo:

6. «idealizámos a mulher» = «a nossa idealização da mulher».

Em 6, idealização é um substantivo abstrato e seleciona complemento nominal.

Pergunta:

Precisava de saber se os nomes das festas (Natal, Carnaval, Páscoa) são considerados palavras variáveis, ou invariáveis.

Resposta:

Apesar de, como nomes próprios, serem, em princípio, invariáveis, porque são nomes que têm um referente fixo, Natal, Carnaval, Páscoa podem variar, tal como também se podem pluralizar nomes próprios pessoais («o João»/«os Joões»): «os Natais da minha infância». 

CfAs datas históricas pós-Acordo Ortográfico

Pergunta:

Na frase da Dedicatória de Os Lusíadas «E vós, Tágides minhas, [...] dai-me agora um som alto e sublimado...», qual é a função que «vós» e «Tágides minhas» desempenham na frase? Desempenham a mesma função de vocativo, ou «Tágides minhas» é modificador apositivo do nome? Ou «vós» será sujeito?!?

Agradeço o esclarecimento prestado.

Resposta:

Quer a ocorrência do pronome «vós» quer a expressão «Tágides minhas» são vocativos que aparecem justapostos.

Este caso encontra paralelo num exemplo apresentado por Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, p. 159):

1 – «Tu, Deus, o Inspirador, Taumaturgo e Adivinho,/ Dá-me alívio ao pesar [..].» (Alphonsus de Guimaraens)

O que vemos em 1 é, por um lado, «tu» como realização do sujeito da ocorrência de imperativo «dá», e, por outro, «Deus», à semelhança de «Tágides minhas» no exemplo em discussão, a ocorrer como chamamento ou apelo. A coocorrência de «tu» com a forma de imperativo correspondente é vista como uma instância de vocativo, conforme propõe o gramático brasileiro Evanilo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, 2002, p. 461; mantém-se ortografia do original): «[em] "Tu! -parte! volve para os lares teus!" [...] tu não é o sujeito de parte, e sim vocativo, "espécie de aposição à idéia do sujeito, contida no imperativo" [...].»

Contudo, supondo a possibilidade de interpretar «Tágides minhas» como modificador apositivo, deve assinalar-se que a supressão do pronome pessoal, não envolvendo a de «Tágides minhas», sugere que esta expressão ocorre exatamente com a mesma função de «tu», ou seja, como vocativo:

2 – «Tágides minhas, dai-me um som alto e sublimado.»

Em 2, «Tágides minhas» continua a ser um vocativo, mesmo que apaguemos «vós» em «E vós, Tágides minhas...». Se esta expressão fosse um modificador apositivo do vocativo, faria parte do vocativo e, assim, também seria omitida, como aconteceria em 1, no caso de supressão do vocativo «Deus»:

1 – «Tu [...] dá-me alívio ao pesar [...]»

Pergunta:

Quando o dicionário me diz que madama é o mesmo que madame, estou diante de uma variante, ou de um sinônimo? Houaiss, por exemplo, distingue as duas palavras: (i) madama – patrulha policial; polícia; e (ii) mulher adulta, casada ou solteira; dama, senhora. Outra hora, diz que madama é variante...

Resposta:

Madama é uma variante popular de madame (cf. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa e dicionário da Porto Editora), por substituição do morfema final (vogal ou índice temático) -e, por -a, que, em português, é mais característico do género feminino. Numa perspetiva muito geral, é claro que também se pode dizer que madama é sinónimo de madame. Note-se que, pelo menos na sua edição de 2001 (a 1.ª), o que o Dicionário Houaiss apresenta é a entrada madama a que atribui uso informal e que define com uma remissão, como o mesmo que madame, e, além disso, numa aceção que lhe é própria («patrulha policial»).

Pergunta:

 Ao que me dizem, parece que algumas gramáticas modernas afirmam que gerúndio é o mesmo que particípio presente.

Será que falando é o mesmo que falante?

Obrigado.

Resposta:

O gerúndio e o particípio presente não compartilham as mesmas formas em português. A rigor, na nossa língua já não há particípio presente, ou, melhor, esta forma não faz parte do paradigma verbal. O que temos, sim, é o sufixo -nte, que permite derivar adjetivos e substantivos (amante, antecedente, ouvinte, seguinte) de temas verbais (amaranteceder, ouvir, seguir) e tem origem na desinência do particípio presente latino (-ns, -ntis). Diz Edwin Williams, em Do Latim ao Português (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2001, p. 191):

«Até o século XVI o particípio presente tinha força verbal mas no português moderno sobreviveu como adjetivo, ocasionalmente como substantivo, em poucos casos como preposição, e. g. salvante, tirante

Observe-se, além disso, que o gerúndio não tem, em português, uso adjetival, como se infere da seguinte observação do Dicionário Houaiss (s. v. gerúndio):

«forma nominal do verbo (q. v.), terminada em -ndo, usada para exprimir uma circunstância ou formar, quando conjugada com os auxiliares andar e estar, verbos freqüentativos, ou para expressar a ação incoativa de um verbo, quando estiver junto dos auxiliares ir e vir

No entanto, observa-se que a terminação de gerúndio -ndo é homónima de uma outra com origem no gerundivo latino1 e que pode ocorre...