Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual a maneira correta de se dizer/escrever o seguinte exemplo: «Podes pintar A teu gosto» ou «podes pintar AO teu gosto».

Obrigada.

Resposta:

As duas formas estão corretas, mas a primeira – «Podes pintar a teu gosto» – é a mais corrente.

Com efeito, a avaliar por uma consulta do Corpus do Português, de Mark Davies, é mais frequente empregar «a meu gosto», «a teu gosto» ou «a seu gosto» do que «ao meu/teu/seu gosto». Tende-se, aliás, ao uso do possessivo sem artigo definido em expressões fixas como esta, como é o caso de «em meu/teu/seu... nome» ou «a meu/teu/seu... favor».

Importa, no entanto, assinalar que, sem possessivo, mas com artigo definido, se diz e escreve «ao gosto de», isto é, «de acordo com as preferências de»: 

(1) «Compunha canções alegres e ingénuas, ao gosto de certo público» (Énio Ramalho, Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa, Livraria Chardron de Lello e Irmãos Editores, 1985)

Pergunta:

Gostaria de saber se ambas as construções a seguir são corretas e em que contextos podemos usá-las: «conversa de bastidor» e «conversa de bastidores».

Muito obrigado!

Resposta:

A questão refere-se ao domínio das expressões fixas, e o critério de correção costuma ser o da estabilidade do uso (ou o da sua intuição) e do seu registo dicionarístico. Contudo, é critério nem sempre conclusivo, porque pode haver variação de registo e até regional, ou seja, uma expressão pode ocorrer em certas circunstâncias e certos lugares e não noutros.

Mesmo assim, consultando alguns dicionários – Dicionário Houaiss, Dicionário Michaelis, Dicionário UNESP do Português Contemporâneo, Infopédia, Priberamdicionário da Academia das Ciências de Lisboa (ACL) –, deteta-se consenso quanto a registar sistematicamente a forma plural bastidores na expressão «de bastidores», no sentido de «fora do domínio público». Exemplos: «intrigas de bastidores» (cf. dicionário da ACL).

Sendo assim, a forma a recomendar será «conversa de bastidores», expressão, aliás, abonada no Dicionário Houaiss.

Pergunta:

Qual é a tradução para português da palavra inglesa coethnic (nome/adjetivo, «que ou pessoa que tem a mesma etnia»).

Resposta:

O termo transpõe-se sem dificuldade em português como coétnico, no sentido de «(pessoa) que é da mesma etnia de outra».

É vocábulo ainda sem registo nos dicionários, mas que ocorre em trabalhos académicos – por exemplo, no item de um inquérito de investigação:

(1) «2 - Quando precisa de financiamento para este(s) negócio(s) ou outro(s) empreendimento(s), a quem recorre? (Vias informais ou formais? Outros Nepaleses? Coétnicos ou não? Familiares? Outro tipo de redes de sociabilidade e contactos?» (cf. Alexandra Crisitna Santos Pereira,Transborder Himalaya: Processos e Transnacionalismo nos Empresários e Trabalhadores Nepaleses em Lisboa, Instituto Superior de Economia e Gestão, volime II – Anexos, 2019, p. 5).

Em contexto não especializados, para referir a pessoa que é do mesmo país que outra, emprega-se compatriota e concidadão (cf. Infopédia e Dicionário Houaiss). Relativamente à mesma região ou lugar, é corrente o termo conterrâneo, a par de patrício e, mais raramente, compatrício (ibidem).

Pergunta:

Existe alguma tradução consagrada em português para a expressão inglesa «from the armchair?

Como em «[...] analyses performed by philosophers from "the armchair".»[*]

Ou se não consagrada, pelo menos com precedentes de utilização?

 

[N. E. – tradução livre: «análises realizadas por filósofos [que ficam] de poltrona»]

Resposta:

Não parece haver uma tradução direta, sistemática e estável. Existem, sim, várias soluções, algumas correspondentes a expressões fixas ou associações lexicais mais ou menos recorrentes (solidariedades lexicais ou colocações), dependendo a sua escolha do contexto.

Como palavra isolada, armchair significa «poltrona» (cf. Infopédia). Tendo em conta a expressão inglesa apresentada, «philosophers from the armchair», a qual pode converter-se em «armchair philosophers» – com armchair como modificador (cf. armchair traveller, «viajante de poltrona», em Lexico.com), a aplicar-se à pessoa a quem falta experiência ou prática numa dada área de conhecimento ou atividade –, é possível propor «filósofos de gabinete», seguindo o modelo de um exemplo colhido no portal de tradução Linguee:

(1) «our fishermen are more deeply committed to the practice of sustainable fishing than your armchair environmentalists» – «[os] nossos pescadores estão ainda mais empenhados do que os seus ambientalistas de gabinete em praticar uma pesca sustentável»

Outras soluções, colhidas na referida fonte: «armchair generals» = «generais de poltrona» (neste caso, parece também possível «de gabinete»); «to make armchair decisions» = «tomar decisões em cima do joelho».

Pergunta:

Numa resposta dada pelo consultório de Ciberdúvidas, está a seguinte frase:

«Se erradicar se aproxima do exagero, irradiar pode também não satisfazer os mais ciosos da integridade semântica das palavras.»

Pergunto, então: a oração iniciada por se é uma oração subordinada condicional típica?

Desde já agradeço a resposta.

Resposta:

A frase em questão não é uma condicional típica, mas também não é uma construção insólita – muito pelo contrário.

Trata-se de uma oração condicional de enunciação, conforme define a Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2020, p. 2024):

«[...] as condicionais de enunciação não se relacionam diretamente com o conteúdo proposicional da oração principal [...]» e «estão antes ligadas à enunciação, podendo ser orientadas para o falante ou para o ouvinte:

(162) a. Se bem me lembro, o João não gosta de ervilhas.

         b. Se achas que é melhor assim, partimos de madrugada.

         c. Se quiseres beber alguma coisa, há sumo no frigorífico.»

O caso de «Se erradicar se aproxima do exagero...» enquadra-se nas condicionais de enunciação, porque é parafraseável por «se [alguém disser que] erradicar se aproxima do exagero [...]». Por outras palavras, a oração condicional apresenta a possibilidade de alguém emitir o juízo segundo o qual tal verbo «se aproxima do exagero».