Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostava de saber se algum dia existiu (mesmo que há muito tempo atrás) a grafia "lápiz", e não a que usamos hoje, lápis.

Bem hajam.

Resposta:

Nas fontes a que temos acesso, não encontramos a grafia "lápiz" (ou "lapiz").

Em dicionários com mais de 150 anos como o dicionário de Bluteau (1712), o de Moraes (1789)  ou o de Domingos Vieira (1871), não ocorrem as formas "lápiz" nem "lapiz" – só lapis ou lápis.

Note-se, contudo, que no dicionário de Domingos Vieira se escreve lapiseira e, como variante gráfica, lapizeira, com z. Em todo o caso, não se deteta na grafia da palavra que é a base de derivação de lapiseiralápis (às vezes sem acento antes da Reforma Ortográfica de 1911) – que se tivesse escrito com -z final.

Pergunta:

A palavra esports, do inglês, se refere aos esportes eletrônicos, como jogos de computador que são jogados profissionalmente em campeonatos.

Essa palavra ficaria confusa no português, visto que se confunde com a palavra esportes.

Sendo assim, qual seria a grafia correta da palavra em português: "e-esportes" (traduzindo o termo), "e-sports" (com hífen, para evitar confusão) ou com a grafia em inglês mesmo, esports (como em email)?

Resposta:

É palavra que ainda não tem grafia portuguesa.

No Brasil, há de facto o problema de se confundir com esporte, o que não acontece em Portugal, porque se diz e escreve desporto. Em todo o caso, em português é possível grafar e-esportes e e-desportos, formas que, no entanto, não parecem ter uso corrente. Em alternativa, o que se pode fazer por enquanto é escrever a forma inglesa esport (cf. Lexico.com) em itálico ou entre aspas.

Note-se, porém, que já têm circulação1 as expressões «esportes eletrónicos» (Brasil) e «desportos eletrónicos» (Portugal e países africanos), boas soluções vernáculas que se recomendam.

 

1 Informação transmitida pelo consultor Luciano Eduardo de Oliveira.<...

Pergunta:

O Livro do Desassossego é referido como sendo um "ur-livro".

Neste contexto, é correta a interpretação de ur como tendo o significado de proto? Qual a origem etimológica desta partícula?

Obrigado.

Resposta:

Trata-se de um prefixo alemão que se usa genericamente no sentido de «arquetípico», «primordial» ou «essencial». É, portanto, legítima a sua identifcação com proto-, prefixo que sugere as noções de «primeiro, primordial, primitivo» (cf. prot(o)- no Dicionário Houaiss.

O prefixo passou ao inglês, idioma que terá atuado como medianeiro no empréstimo do prefixo ao português:

«Ur- é um prefixo que significa "original, antigo, primitivo", do alemão ur- "(fora) de, anterior", do protogermânico *uz-, "de", do protoindo-europeu *ud- "para cima, para fora". Inicialmente só ocorria em empréstimos vindos do alemão (como Ursprache "língua primitiva hipotética"); desde meados do século XX, um sufixo produtivo em inglês» [tradução livre de «prefix meaning "original, earliest, primitive," from German ur- "out of, original," from Proto-Germanic *uz- "out," from PIE *ud- "up, out" [...]. At first only in words borrowed from German (such as Ursprache "hypothetical primitive language"); since mid-20c. a living prefix in English», Online Etimology Dictionary].

Na passagem ao português, como o prefixo não está ainda plenamente integrado, pode hifenizar-se a palavra que o inclua: ur-livro (com o prefixo em itálico para assinalar o seu estatuto de estrangeirismo).

Pergunta:

A resposta que D'Silvas Filho deu a uma consulta de 21.12.2007 sobre as variantes úmido e húmido sugere que a variante brasileira (úmido) inovaria relativamente à portuguesa (húmido), embora não escandalizasse (muito), mesmo nos «hábitos europeus» dos portugueses, já que dispensaria um h que não se pronunciava.

É isto verdadeiro apenas em parte, já que, embora o período pseudoetimológico da ortografia nos legasse húmido, era originariamente umidus o étimo latino. Assim, o que era falso cultismo (húmido) se tornou, com o tempo, a forma popular, a qual os formuladores da ortografia oficial brasileira acabariam por preterir em favor do cultismo, este sim, etimologicamente correto, úmido.

Não quero com isto sugerir que o étimo latino correto deva ser o parâmetro por excelência para a definição da aceitabilidade de determinada grafia, até porque, para mim, o parâmetro por excelência é o uso culto efetivo, real, nos nossos dias, pelo que úmido é errado em Portugal, e certo no Brasil, e húmido é errado no Brasil e certo em Portugal.

A minha única intenção foi esclarecer que, diferentemente do que sugeriu D'Silvas Filho, não houve liberalidade brasileira, mas, pelo contrário, rigorismo.

Resposta:

Agradece-se o comentário ao consulente.

resposta já tem alguns anos – praticamente 15 – e foi dada na perspetiva de considerar a forma úmido como resultado da supressão do h inicial, no contexto de uma ortografia inovadora. Contudo, do ponto de vista histórico, sabe-se que não é bem assim, pois a forma úmido tem grande tradição.

Com efeito, úmido remonta a forma latina mais antiga. Contudo, é ainda no período romano que surge também a forma com h-, como se observa no Dicionário Crítico Etimológico Castellano e Hispánico de Joan Coromines e J. A. Pascual: «En latín la grafía umidus es la correcta, aunque pronto se empezó a escribir con h- por una relación seudoetimológica con humus ‘tierra’» [tradução: «Em latim a grafia umidus é a correta, embora cedo se começasse a escrever com h- por causa de uma relação pseudotimológica com humus 'terra'].

Sendo assim, a língua portuguesa conserva duas variantes que vêm diretamente dos tempos romanos – e ao que parece com igual rigorismo, mesmo na conservação da forma pseudoetimológica.

Pergunta:

Os plurais abdómenes, pólenes, gérmenes vieram-nos do espanhol?

Muito obrigado!

Resposta:

É possível que o castelhano (ou seja, o também chamado espanhol) tenha sido o medianeiro desse tipo de plurais com -n- intervocálico. Contudo, tudo depende da fase da história da lingua em que tais plurais se fixaram na língua.

Os vocábulos eruditos terminados em -n- os que acabam em -an (íman), mais correntes em Portugal – definem uma série vocabular que só começou a ganhar uso com o Renascimento ou pouco depois, portanto, numa época em que o castelhano tinha grande presença na corte em Lisboa (cf. o que se diz sobre a influência do castelhano sobre o português em Assim Nasceu uma Língua, de Fernando Venâncio). É, pois, possível, que abdómenes e gérmenes, que estão documentados desde o século XVI, possam dever a sua configuração à influência ou à transmissão castelhana.

Note-se, porém, que polén só se documenta a partir do século XIX, o que significa que o plural pólenes já pode dever-se à interferência de uma outra língua – o francês ou já o inglês – com certa hegemonia na comunicação científica ou até ter sido tomado diretamente do latim científico. Fica a conjetura, porque as fontes consultadas não se afiguram esclarecedoras quando à origem e transmissão exatas deste vocábulo.