Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A palavra timer, do inglês, pode ser traduzida como temporizador, porém existem algumas palavras estrangeiras que passaram a fazer parte da língua portuguesa.

Minha dúvida é se a palavra timer faz ou não parte do português, já que eu já a encontrei em alguns sites de dicionários, como no dicio.com.br.

Obrigado.

Resposta:

Se uma palavra importada (empréstimo), como é o caso de timer – literalmente, «marcador de tempo», ocorre frequentemente no discurso em língua portuguesa, então é porque ela, de alguma maneira, está em processo de integração.

De facto, assim parece, pelo menos, no que respeita à variedade brasileira, conforme sugerem os registos existentes no Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa e no Dicionário Houaiss, no qual timer figura em itálico como indicação de estrangeirismo e definido como «dispositivo visual ou sonoro que sinaliza o final de um período preestabelecido de tempo».

Em alternativa, contam-se formas vernáculas, de acordo com os padrões do português, como o termo temporizador, que se recomenda, pelo menos, quando se trata de referir um «dispositivo automático programável que ativa ou desativa um aparelho no momento estabelecido» (cf. Infopédia; ver também Priberam). Trata-se, portanto, de um termo adequado como equivalente de timer, quando este anglicismo designa um «dispositivo regulador da ignição» (dicionário inglês-português da Infopédia). Outras soluções vernáculas possíveis são cronómetro<...

Pergunta:

A propósito [de uma condicional de enunciação abordada] em 3/6/2022, acrescento o caso curioso das frases a seguir, em que a condição parece estar posta na oração principal, e não na subordinada iniciada por se:

«Se queres tornar-te culto, procura estudar muito.»

«Se escolhermos este caminho, precisaremos tomar cuidado com os perigos nele ocultos.»

«Se teu objetivo é atingir o ápice na carreira, prepara-te para enfrentar desafios.»

«Se você pretende escrever bem, leia bons autores.»

São também essas orações condicionais de enunciação?

Agradeço desde já a resposta.

Resposta:

Numa primeira análise, concorda-se com o que diz o consulente a respeito da primeira, terceira e quarta frases, porque nelas a condição é relativa a uma atitude de um coenunciador (um interlocutor): «quero tornar-me culto», «o meu objetivo é...», «pretendo». Na condicional, marcam-se, portanto, valores modais, neste caso de tipo volitivo ou desiderativo.

A conversão de tais frases nas construções condicionais "típicas" – factuais, hipotéticas, contrafactuais (ver "As regras da expressão da condição") – parece ter problemas de aceitabilidade se forem retiradas as palavras que marcam a atitude desse coenunciador. Pelo menos, é o que se concluirá com a manipulação das frases por meio da alteração dos núcleos verbais (o ? indica frase duvidosa ou até agramatical):

(1) ?Se te tornas/tornares/tornasses culto, estudas/estudarás/estudarias muito.

(2) ?Se atinges/atingires o ápice, enfrentas/enfrentarás muitos desafios.

(39 ?Se escreves/escreveres bem, lês/lerás bons autores.

Note-se, porém, que as frases acima não serão de todo impossíveis, porque a sua interpretação pode ser legitimada por fatores referenciais.

O segundo caso – «Se escolhermos este caminho, precisaremos tomar cuidado com os perigos nele ocultos» – incluir-se-á nas condicionais mais típicas, em que se estabelece uma relação entre valores factuais ou hipotéticos e estados de coisas: neste caso, a escolha do caminho é contemporânea ou um pouco anterior ao cuidado a tomar.

Pergunta:

Acabo de ler «Se algum doente a tocasse, ficaria curado.» Tudo me leva a crer que deveria ser «lhe tocasse» (tocar em). Estou a ver mal? É mesmo admissível «a tocasse»?

Obrigado.

Resposta:

Não é impossível nem incorreto «se algum doente a tocasse», mas, como «tocar alguém» pode ser sinónimo de comover («o discurso tocou-a profundamente»), a construção com lhe é mais clara quanto a denotar a ação de «aproximar ou pôr a mão (ou outra parte do corpo) em contacto com o corpo de outra pessoa».

O verbo tocar tem uso corrente como transitivo indireto: «tocar em alguém/alguma coisa», com pronominalização marcada por lhe – «tocar-lhe». Contudo, também se regista em dicionários1 e textos literários – e, portanto, legitima-se – como transitivo direto («tocar alguém/alguma coisa»). Exemplo:

(1) «Ela lançava-se contra o peito do irmão, chorava, chorava, os seus soluços ansiosos repercutiam no peito dele, que estava vencido, sem hostilidade, sem coragem mesmo para lhe tocar os cabelos [...].» (Agustina Bessa Luís, Os IncuráveisCorpus do Português2).

Mesmo assim, o verbo tocar, que é polissémico, pode revelar pequenas diferenças semânticas entre os dois usos, as quais nem sempre se prestam a sistematização. Por exemplo, o Dicionário Gramatical dos Verbos Portugueses (Texto Editora, 2007, coordenado por Malaca Casteleiro) apresenta o uso transitivo indireto em aceções que sugerem um contacto físico deliberado, como atividade eventualmente sexual:

(2) A mãe não o deixava tocar nas gavetas dela. («mexer, remexer»)

(3) A avó não admitia que a professora tocasse nos netos. («bater, agredir»)

(4) O arguido confessou ter tocado no rapaz. («apalpar, ter contacto sexual»)

Nos exemplos, afigura-se, portanto, estranho e mesmo incorreto o uso tra...

Pergunta:

Qual o significado da expressão «a que título»?

Resposta:

A expressão «a título de» significa «na qualidade de; sob título de» (Ex.: "empregou-o a título de ajudante"), «no intuito de, a pretexto de; sob título de» (Ex.: "deu-lhe o dinheiro a título de ajuda")» (cf. Dicionário Houaiss).

Sendo assim, a expressão «a que título», a introduzir uma oração interrogativa, equivale a expressões como «com que pretexto» ou «com que autoridade».

Pergunta:

Como poderei classificar uma espécie de peixe presente em todos os oceanos? "Circunglobal" ou, à semelhança de circum-estelar, "circum-global"?

Obrigada

Resposta:

Pode empregar -se circunglobal, embora este termo ainda não tenha registo em dicionários gerais.

Assim:

– Em inglês se usa circumglobal em referência à dispersão mundial de uma população.

– O termo circunglobal – nem sempre escrito assim – ocorre em textos escritos tanto no português do Brasil como no português de Portugal.

– Note-se, contudo, que o termo circunglobal também pode ter significado mais restrito e referir-se apenas à distribuição global num mesmo intervalo entre latitudes (ver aqui).

– Quanto à grafia, deve esta ter a forma circunglobal, tal como se escreve circungirar (cf. Infopédia), com n antes de g.

Recorde-se que o prefixo circum- só tem hífen antes de vogal, h, m ou n: circum-escolar, circum-hospitalar, circum-murado, circum-navegação (cf. Base XVI, 1, alíneas a) e c do Acordo Ortográfico de 1990). Noutras situações, associa-se sem hífen à palavra que é base da derivação: