Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Encontrei na crónica A prateleira que nos mostra bem, de Ferreira Fernandes (Diário de Notícias, 29 de dezembro de 2010), a expressão «atingir o patamar de Peter» e não consegui entender bem o sentido, nem pesquisando na rede. A frase completa é: 

«Seja porque ele atingiu o seu patamar de Peter (não exerce bem o cargo) ou porque é vítima de injustiça – não interessa, o facto é que quem de direito o quer demitir.» 

Como tenho de traduzir para italiano o texto, quereria mais informações sobre a origem desta expressão e o seu significado. 

Obrigada.

Resposta:

O jornalista refere-se ao chamado "princípio de Peter", que pode ser assim definido:

«Num sistema hierárquico, todo o funcionário tende a ser promovido até ao seu nível de incompetência.»

Trata-se de uma das máximas de Laurence J. Peter e Raymond Hull, no livro The Peter Principle, obra escrita em tom humorístico, que, publicada em 1969, constituía uma proposta daquilo a que estes autores chamaram a «ciência da hierarquilogia», ou seja, da investigação do funcionamento das hierarqias, sobretudo, no domínio empresarial.

No texto português em preço, o «patamar de Peter» é o mesmo que o «nível de incompetência», ou seja, a incapacidade de desempenhar as tarefas exigidas por um cargo a que se ascendeu por via da promoção profissional.

Pergunta:

Na frase «renuncia ao prémio», «ao prémio» assume a função de complemento oblíquo, ou complemento indireto?

Resposta:

Na perspetiva do Dicionário Terminológico, trata-se de um complemento oblíquo, porque não é substituível por lhe, conforme evidenciam os exemplos (ii) e (iii) (OK = gramatical; * = agramatical):

(i) «Renunciou ao prémio.»

(ii) OK «Renunciou a isso/a ele.»

(iii) * «Renunciou-lhe.»

Pergunta:

No segmento «Vinha todo enlameado...», o vocábulo todo pertence a que classe de palavras? Quantificador universal? Ou, do ponto de vista semântico, poderá ser considerado um advérbio de quantidade (?)/modo (?)?

Aguardo resposta. Obrigada.

Resposta:

Trata-se de um uso especial de todo que a descrição gramatical tem alguma dificuldade em descrever. Não é, por isso, um caso a utilizar em situações de avaliação e, a ser explorado, talvez só mesmo nos últmos anos do secundário, mas sem constituir conteúdo a avaliar.

E. Bechara, na sua Moderna Gramática Portuguesa (2003, pág. 198/199), considera que esse uso junto de predicativo ou modificador adjetival tem valor adverbial:

«Todo pode ser empregado adverbialmente, com valor de "inteiramente", "em todas as partes":

"Desculpe-me, que eu estou todo absorvido pela minha mágoa!" [..]

Suas origens pronominais facultam-lhe a possibilidade de poder, por atração, concordar com a palavra a que se refere:

O professor é todo ouvidos. Ela é toda ouvidos

Ele está todo preoocupado. Ela está toda preocupada.

Acabamos de ver as crianças todas chorosas.»

Ver também, noutra perspetiva, as respostas às Perguntas Relacionadas.

Pergunta:

Gostaria de saber se é correto escrever patrimoniar, com o sentido de se atribuir alguma forma de registro de patrimônio, como uma tarja de identificação de algo que pertence a uma instituição. Não encontrei a palavra no VOLP, Priberam e Aulete mas encontrei a palavra patrimoniado, significando que tem ou recebeu patrimônio.

Muitíssimo grato.

Resposta:

A palavra patrimoniado, «que possui ou recebeu patrimônio» (Dicionário Houaiss), está de facto registada em diversos dicionários gerais. A sua configuração, que é a de um adjetivo participial, pressupõe uma forma verbal, patrimoniar, que, não obstante estar bem formada, não se encontra dicionarizada.

Assinale-se, porém, que o significado de patrimoniado supõe interpretar patrimoniar como «possuir ou receber património», e não o significado de «fazer de alguma coisa património», como pretende o consulente. Esse novo significado, não sendo arbitrário, porque há modelos de criação lexical semelhantes – por exemplo, matrimoniar, «esposar», de matrimónio (cf. Diconário Houaiss) –, é uma total inovação, que exige a necessária difusão entre os falantes para se impor. Refira-se ainda que já se usa o vocábulo patrimonializar, que, no entanto, adquiriu um significado muito específico: «dar a alguma coisa o estatuto de património no contexto da cultura local, nacional ou mundial».

Pergunta:

Tenho dúvida quanto à ocorrência da crase na expressão «marcha a ré». O Dicionário Houaiss diz que não há crase e exemplifica com a frase: «prestes a concluir-se o acordo, uma das partes deu marcha a ré». Já outras fontes defendem o uso do acento grave nesse caso.

Qual é o parecer do Ciberdúvidas?

Resposta:

Há variação, pelo menos, entre o Brasil e Portugal:

a ré – no Brasil, sem crase, isto é, sem contração da preposição com o artigo definido, conforme se escreve no Dicionário Houaiss; em Portugal, o mesmo que marcha-atrás;
marcha à ré – em Portugal, usa-se à ré, com contração (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa; o mesmo que «parte traseira», «retaguarda», conforme se regista no Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, na versão em linha da Infopédia).

Esclareça-se que esta resposta constitui não um parecer, mas, sim, uma brevíssima descrição dos usos registados pelas fontes consultadas.