Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostava de saber se a palavra defenestrar existe e, caso exista, qual o seu significado.

Resposta:

Defenestrar é um verbo transitivo («defenestrar alguém») que significa «lançar violentamente de uma janela ou varanda para a rua» (Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora) ou, em sentido figurado, «livrar-se de alguém» (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).

Os dicionários gerais divergem quanto à etimologia deste verbos: uns, como o Dicionário Houaiss, consideram que se trata de um empréstimo do francês («fr. défenestrer (1564), "retirar as janelas de" (1863), "atirar alguém ou algo pelas janelas" [...], der[ivado] de dé- + fenêtre (lat. fenestra, ae, "janela") [...]»); outros, como o Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, atribuem-lhe origem latina, relacionando-o com defenestrāre. De qualquer forma, é plausível que o verbo seja uma criação francesa erudita com base no latim, atendendo a que o aparente derivado defenestração tem boas hipóteses de ser aportuguesamento de uma palavra francesa alusiva à Guerra dos Trinta Anos, conforme se anota no Dicionário Houaiss:

«[Do] fr[ancês] défénestration (1838), "ação de jogar algo ou alguém pela janela", der[ivado] do v[elho] fr[ancês] défénestrer + -(a)tion; voc[ábulo] esp[ecialmente] us[ado] com referência ao episódio célebre de 23 de maio de 1618, na história tcheca, quando revoltosos boêmios invadiram o castelo de Hradsin, interromperam uma reunião entre comissários imperiais e deputados do Estado e, em seguida, lançaram dois comissários e seus secretários pela janela; o fato...

Pergunta:

É legítima a palavra desmoralizante?

Só encontro dicionarizada (pelo menos no Priberam) a palavra desmoralizador.

Obrigado!

Resposta:

É legítima. Note que encontra moralizante no dicionário que refere. Ora, se este dicionário admite moralizante como o mesmo que moralizador, que também atesta, e, por outro lado, acolhe desmoralizador, não parece haver impedimento para a formação de desmoralizante. Os dicionários nem sempre registam todos os potenciais derivados de uma palavra, mas, já agora, refira-se que o Dicionário Houaiss acolhe tanto desmoralizador como desmoralizante.

Pergunta:

Há alguma regra para a utilização dos sufixos -ção e -mento na formação de substantivos?

Exemplos: manifestar + -ção = manifestação

consentir + -mento = consentimento

Resposta:

Não há regra que determine quando usar -ção ou -mento: muito depende da escolha por um ou outro sufixo em dado momento da história da língua e da fixação dessa escolha no uso. Por exemplo, para designar o ato de afundar, diz-se afundamento, e não *"afundação"; mas para nomear o processo de evacuar, não se usa *"evacuamento", mas, sim, evacuação. Há também casos, em que o léxico disponibiliza os dois derivados, muitas vezes com significados ligeiramente diferentes: abonação e abonamento (o primeiro tem mais aceções que o segundo; cf. Dicionário Houaiss).

Note-se que estes sufixos se juntam ambos a um tema verbal (a forma que fica depois de retirado o morfema -r, relativo à flexão de infinitivo) para formar substantivos:

organiza(r)+ -çãoorganização

estaciona(r) + -mentoestacionamento

Pergunta:

Como se lê «ano 1800»?

Qual a forma correta? «Ano mil oitocentos», ou «ano mil e oitocentos»?

E porquê?

Muito obrigada.

Resposta:

Deve dizer «ano mil e oitocentos»1. Note que, quando se segue outro algarismo às centenas, desaparece a conjunção e entre os milhares e as centenas, para reaparecer entre estas e as dezenas ou as unidades.

1800 = «mil e oitocentos»
 
1801 = «mil oitocentos e um»

Sobre o uso da conjunção com numerais, vale a pena transcrever o que Paul Teyssier diz no seu Manual de Língua Portuguesa (Coimbra, Coimbra Editora, 1989, págs. 181-182; manteve-se a ortografia original):2

«— E figura entre as dezenas e as unidades e entre as centenas e as dezenas, p. ex. 47: quarenta e sete; 375: trezentos e setenta e cinco.

E não figura entre os milhares e as centenas, excepto quando a mil se segue um algarismo simples, p. ex.:

4.226: Quatro mil duzentos e vinte e seis

1.400: mil e quatrocentos

1.030: mil e trinta

— Nos números muito grandes suprime-se o e entre os grupos de três algarismos, p. ex.: 628.418.639.426: seiscentos e vinte e oito biliões quatrocentos e dezoito milhões seiscentos e tinta e nove mil quatrocentos e vinte e seis.

— Ex. de cardinais:

36: trinta e seis; oitenta e uma casas [...]; duzentos quilómetros («200 km»).

Pergunta:

«Que melhor lhe agradar», ou «que mais lhe agradar»?

Obrigada.

Resposta:

Com o verbo agradar, pressupõe-se a noção de intensidade, afim da de quantidade, como acontece com gostar: «agradar muito», «agradar pouco». Quando a construção é superlativa ou comparativa, os advérbios muito e pouco passam a mais e a menos: «o chá agrada mais/menos à Teresa do que o café»; «o chá é a bebida que lhe agrada mais.» Outros verbos são compatíveis com a ideia de qualidade («parece bem/mal sair em pijama» > «sair em pijama parece melhor/pior do que em roupão», «sair em pijama é o que parece melhor») ou até se associam a valores tanto de qualidade como de quantidade («escreve bem/muito» > «ele escreve melhor que ela», «ela escreve mais agora do que no ano passado»). Contudo, não é este o caso de agradar ou gostar: «o chá agrada-lhe "melhor" que o café» e «ela gosta melhor de chá» têm aceitabilidade nula. Mesmo assim, note-se que um verbo sinónimo de agradar, aprazer (que muitos gramáticos consideram defectivo), aceita os superlativos «muito bem» e melhor: «Faça como muito bem/melhor lhe aprouver.»