Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

É correto dizer-se «ao lado de mim»?

Resposta:

É, mas utilizado com maior hesitação do que «ao meu lado», que é preferível.

Conforme se lê na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, pág. 327), de Celso Cunha e Lindley Cintra (estes autores usam o termo pronome possessivo, que abrange o que na terminologia gramatical atualmente usada em Portugal são os pronomes e os determinantes possessivos):

«Em certas locuções prepositivas, o pronome oblíquo, que deve seguir a preposição e com ela formar um complemento nominal do substantivo anterior, é normalmente substituído pelo pronome possessivo correspondente. Assim:

em frente de ti — em tua frente, ou: na tua frente
ao lado de mim = ao meu lado
em favor de nós = em nosso favor
por causa de você = por sua causa

[...]» 

Note-se que Cunha e Cintra apontam casos em que, na locução prepositiva, existe um substantivo (frente, lado, favor, causa) compatível com a ocorrência de um determinante possessivo (meu, teu, seu, etc.). Diga-se ainda que estes gramáticos não parecem rejeitar construções como «ao lado de mim»; apenas afirmam que estas são "normalmente", ou seja, geralmente, substituídas pela construção com o possessivo, o que permite inferir que esta é preferível.

Pergunta:

No Algarve e no Alentejo, ouve-se frequentemente a expressão «estou desejando de» + infinito dum verbo (ex.: «estou desejando de voltar»), no sentido de «estar desejoso de». No entanto, o verbo desejar não é regido da preposição de. Assim, diz-se «eu desejo voltar a casa». É correto/incorreto usar «estar desejando de»? Porquê?

Resposta:

No contexto do português-padrão, é incorreto ou desadequado empregar a construção «estou desejando de». É possível que a ocorrência da preposição de com «estar desejando» seja uma inovação, por analogia com «estar desejoso de». No entanto, no registo informal, em contexto familiar, não vejo razão para não usar a expressão «estou desejando de», cujo registo fica, desde já, aqui feito. Saber empregar com critério as muitas construções e palavras de cunho local é uma maneira de não perder a diversidade cultural associada à própria identidade das comunidades de falantes de português.

Pergunta:

Gostaria de esclarecer uma dúvida quanto à formação da palavra encomendar, visto que já encontrei explicações diferentes em gramáticas diversas.

Obrigada.

Resposta:

Se encontrou diferentes propostas de análise morfológica do verbo encomendar, não admira, porque a análise desta palavra não se apoia apenas na intuição e requer algum conhecimento da sua história. Não faço ideia de quais as gramáticas em causa, mas calculo ser possível que encomendar apareça descrito como derivado de encomenda — classificação que não é a mais adequada, se atendermos à história da palavra, cuja reconstituição não reúne consenso. Com efeito, segundo o Dicionário Houaiss, trata-se de um derivado por prefixação do arcaísmo comendar: «en- + comendar (antigo e desus.) e, este, do lat. commendo, as, āvi, ātum, āre, "depositar, entregar, confiar; recomendar"». O dicionário da Academia das Ciências de Lisboa confirma aparentemente esta etimologia, embora proponha a associação direta do prefixo en- à forma latina, o que se torna discutível, porque para que um prefixo português se solde a outro elemento é preciso que este tenha já feição portuguesa. Por seu lado, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, parece sugerir que o verbo português é simples adaptação da forma latina hipotética ou reconstruída *incommendare (o asterisco assinala esse estatuto de hipótese ou reconstrução linguística), derivado de incommendātu, «exposto à mercê de alguém». Em suma, acho que este verbo não será o mais adequado para ilustrar os processos produtivos de derivação no português contemporâneo.

Pergunta:

Considerando a Base XV do NAO que estabelece o emprego de hífen nas palavras compostas que designam espécies botânicas e zoológicas (sendo um dos exemplos dados do texto do Acordo feijão-verde, que não é propriamente ume espécie) e que o sentido de casta nas uvas é «grupo de indivíduos (…) que, por alguns caracteres, se distinguem de outros da mesma espécie e podem constituir uma raça ou variedade» – Infopédia):

a) Devemos hifenizar as respetivas designações? Tinta-roriz, touriga-nacional, touriga-franca, malvasia-fina, etc.?

b) Se sim, no caso de Cabernet Sauvignon, hifeniza-se ou, tratando-se de uma importação, põe-se entre aspas sem hífen?

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Resposta:

Considerando que, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, casta é, em enologia, o termo aplicável à «qualidade aromática que cada uma das variedades de uva transmite ao vinho que origina» e que, no domínio da biologia, a mesma palavra pode designar essas variedades, já que tem a aceção de «grupo de indivíduos (animais ou vegetais) que, por alguns caracteres, se distinguem de outros da mesma espécie e podem constituir uma raça ou variedade», os nomes das diferentes castas de uvas que forem compostos devem escrever-se com hífen. Sendo assim, tinta-roriz, touriga-nacional, touriga-franca, malvasia-fina serão as formas mais corretas, à luz da Base XV do novo Acordo Ortográfico, muito embora eu não encontre estas formas registadas em dicionário nem em vocabulário ortográfico atualizados.

Note-se que tanto no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora (DLPPE) como no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, figura a forma touriga nacional, sem hífen, não como entrada mas como termo integrado na definição da entrada touriga. Este facto poderia indicar que os termos em discussão podem usar-se sem hífen, mas, no DLPPE, o registo de malvasia-do-bairro e malvasia-grossa, termos hifenizados que designam variedades de casta designada por malvasia, justificam as grafias acima propostas.

Quanto a castas com nome estrangeiro, não sei de critério generalizável. O mais que p...

Pergunta:

Como escrever correctamente:

— «carro de bois», ou carro-de-bois?

— «mosca branca», ou mosca-branca (no sentido regional de «floco de neve»)?

— «erva de São Roberto», ou «erva-de-São Roberto», ou «erva-de-São-Roberto»?

Resposta:

De harmonia com as Bases XV e XVI do novo acordo ortográfico, segue-se a grafia correta das palavras que apresenta:

— «carro de bois» (é uma locução substantiva que inclui uma preposição, mas não designa espécie zoológica nem botânica, logo não tem hífen);

— «mosca-branca», mas «mosca branca» também possível (não se afigura como uma locução substantiva que inclua uma preposição e, embora não designe espécie zoológica, recomenda-se o hífen tal como acontece com compostos resultantes da associação de nome e adjetivo — guarda-noturno);1

erva-de-são-roberto (designa espécie botânica; segundo a 1.ª edição do Dicionário Houaiss, é o mesmo que bico-de-cegonha, nome de várias espécies botânicas).

1 Não encontro atestação de «mosca branca». Não se tratará de mosca branda, singular de moscas brandas, forma de plural registada por Guilherme Augusto Simões no seu Dicionário de Expressões Populares Portuguesas (Lisboa, Edições D. Quixote, 1993), como regionalismo da Guarda, com o significado de «neve a cair»?