Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A corrigir um exercício da Gramática Prática de Português (2.º ciclo, 2011, segundo as normas do DT e do AO) surgiu-me uma dúvida que me levou a outros exemplos. Passo a explicar. Aparece a palavra água para exemplificar um ditongo crescente. E na palavra qual a solução diz que se trata de um ditongo oral e crescente.

Primeira pergunta: tratando-se de ditongos, o mesmo se aplica à sequência -ua- das palavras lua, quando, habitual e guarda-chuva? Ou nalguns destes exemplos haverá um hiato e porquê?

Segunda pergunta: tratando-se de hiato ou ditongo, como são divididas estas palavras para efeitos de divisão silábica e de translineação?

Terceira pergunta: é a palavra água grave, ou esdrúxula?

Quarta pergunta: na palavra temia, estamos perante um ditongo crescente e oral, ou perante um hiato?

Resposta:

A respeito de lua, trata-se de um dissílabo cujo acento tónico recai na primeira sílaba, lu-. Este é um caso de hiato.

Diferente é o caso de água, quando e guarda, porque, tradicionalmente, se considera que u, depois de q ou g e seguido de vogal, se torna semivogal, formando ditongo.

No contexto da divisão silábica, se houver hiato, separam-se a vogais, porque são núcleos de sílabas diferentes, como é o caso em lua: lu.a. Nos outros casos, verificam-se ditongos, logo, não há lugar à separação de vogais e o ditongo indica apenas uma sílaba: á.gua, quan.do, guar.da. Finalmente, a respeito de habitual, há duas possibilidades: hiato em pronunciação pausada (ha.bi.tu.al) ou ditongo em pronunciação rápida (ha.bi.tual).

Atenção, que na translineação destas palavras não se devem deixar letras sozinhas, pelo que as sílabas de lua e água não se separam. Nas outras palavras, é possível a translineação:

quan-
do

 

Pergunta:

Estou a traduzir um catálogo espanhol de prendas natalícias para português que tem o título (traduzido para português) «Aqui tens... Natal». Na Espanha fazem o duplo sentido léxico de «aqui tens... prendas (para o Natal)» e logo também se pretende dizer que «aqui chegou».

Gostaria de saber (até porque tem de ser o mais semelhante possível tudo o que se traduz) se é correcto dizer: «Aqui tens.. Natal», «Aqui está... Natal», etc.

Resposta:

Eu proporia «Aqui tem... o Natal», pelas seguintes razões:

1. A palavra Natal costuma ser usada com artigo – definido, quando se trata de referir a festa celebrada a 25 de dezembro, ou indefinido, quando se alude à maneira como se concebe essa celebração («Tenha um Natal feliz!»).

2. Contudo, a respeito da frase que o consulente propõe inicialmente, assinalo que é possível em português uma sequência «Aqui tens... Natal», na medida em que assim como se diz «é Natal», sem artigo, também é possível formar as frases «há crianças que não têm Natal» ou «neste ano não há Natal por causa da crise» ou falar de «férias/período de Natal».1

3. Dito isto, parece-me que a ausência de artigo em «Aqui tens... Natal» torna a frase interpretável apenas como «Aqui... tens condições para celebrar o Natal – incluindo os tradicionais presentes». Se o artigo for incluído – «Aqui tens... o Natal», já a frase permite a dupla leitura pretendida: «Aqui tens aquilo que define o Natal, incluindo as prendas» e «chegou o Natal».

4. Finalmente, uma observação relativa ao tratamento do interlocutor no contexto da promoção comercial: em Portugal, usam-se as formas pronominais e verbais da segunda pessoa do singular, tu, com contenção, reservando-as para a intimidade ou certos contextos profissionais. Quero dizer que em campanhas publicitárias que visem o comprador adulto se preferem as formas de terceira pessoa do singular. Diga-se, portanto, «Aqui tem... o Natal».

1 A possibilidade de expressões «férias de Natal», «período de Natal», «época de Natal» não invalida, no entanto, «férias/período/época ...

Pergunta:

Tenho ouvido frequentemente a palavra admonição usada para designar o mesmo que uma pequena introdução/apresentação de uma temática que irá ser desenvolvida posteriormente. Também já ouvi a palavra monição, para designar o mesmo. Está correto? As duas palavras existem e são sinónimas?

Resposta:

As palavras em questão estão dicionarizadas, mas não com os significados que o consulente lhes atribui. Consultando o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, lê-se:

admonição [...] P[ouco]  Us[ado] Advertência feita a alguém sobre a incorrecção da sua conduta, aconselhando-a a modificá-la. = Admoestação, repreensão [...]

monição [...] Can[ónico]. Aviso judicial que o bispo faz, em certos casos, antes de decretar a excomunhão ou de dirigir uma censura contra alguém; publicação de monitória.

Pergunta:

Consciente das diferenças quanto à normatização do uso dos porquês nas variantes europeia e americana da língua, eu, como brasileiro e utilizador da segunda, gostaria (ou gostava) de saber se são corretas, de acordo com a variante americana, as formas a seguir. Penso que o são: «E o prenome, escolhido sabe-se lá o porquê, bem poderia induzir em erro» e «o prenome, escolhido sabe-se lá por quê, bem poderia induzir em erro».

Resposta:

As frases apresentadas estão corretas, considerando a norma brasileira:

a) na primeira frase, porquê é usado como substantivo, sendo sinónimo de motivo (cf. Dicionário Houaiss), pelo que deve escrever-se como uma única palavra gráfica;

b) no segundo caso, escreve-se por quê, sendo sinónimo de «por que motivo» e pressupondo uma oração interrogativa indireta selecionada pelo verbo saber: «isso acontece sabe-se lá por quê» = «sabe-se lá por que razão isso acontece».

Sobre por quê, leia-se o que Maria Helena de Moura Neves diz no Guia de Uso do Português (São Paulo, Editora Unesp, pág. 608):

[...] A construção por que é usada para formular pergunta:

direta — POR QUE é que está chorando aqui na rua [...]

indireta — Já sou adolescente agora, mas fico assustada, quero saber POR QUE chora. [...]

O elemento que dessa expressão é acentuado apenas quando ela encerra a interrogação ou vem antes de pausa muito acentuada. • Preso POR QUÊ? [...] • Continuava guardando segredo. POR QUÊ? [...] • E digo

Pergunta:

Que poderá significar a palavra (adjectivo?) lampante, como em «azeite lampante»?

Comentário: não encontrando a palavra nos dicionários, encontrei-a em textos online relacionados com a produção e tipos de azeite.

Resposta:

Encontro o adjetivo lampante num artigo da Wikipédia (sublinhado meu):

«[O] [a]zeite de oliva comum é obtido da mistura do azeite lampante, inadequado ao consumo, reciclado por meio de processos físico-químicos e sua mistura com azeite virgem e extravirgem.»

Devo, contudo, observar que não vejo este adjetivo figurar nos dicionários que consultei, sejam eles portugueses ou brasileiros (Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, Dicionário de Expressões Populares, de Guilherme Augusto Simões, Dicionário Houaiss, Dicionário Aulete). Onde dou com a palavra registada é em espanhol, como atesta a entrada lampante no dicionário da Real Academia Española (RAE), correspondente à definição «[s]e dice del queroseno purificado que se emplea para el alumbrado» («diz-se do querosene purificado que se emprega na iluminação»).

A palavra ocorre atualmente também em português, em páginas da Internet respeitantes à indústria do azeite, conforme se verifica no seguinte exemplo:

«O Copa-Cogeca recebeu com satisfação a decisão do comité de Gestão da União Europeia para...