Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«E o que é a vida, senão o bem maior a que o ser humano pode almejar?»

Há na frase acima a possibilidade de não se colocar o sinal de interrogação?

Obrigado.

Resposta:

Não. A frase só pode ser interrogativa, como demonstra a inaceitabilidade da seguinte frase declarativa (o asterisco indica que a frase é inaceitável):

*«E o que é a vida, senão o bem maior a que o ser humano pode almejar.»

Isto ocorre em virtude de o advérbio senão, no sentido de «a não ser», «salvo», «excepto», ter duas construções, cada qual dependente de um tipo de frase (cf. Maria Helena de Moura Neves, Guia de Uso de Português, s. v. senão):1

a) não... senão em frase declarativa negativa: «A vida não é senão o bem maior...»;

b) senão antecedido de palavra interrogativa (pronome ou determinante) a introduzir oração interrogativa: «O que [pronome interrogativo] é a vida senão o bem maior...?»

Sendo estruturalmente «E o que é a vida, senão o bem maior [a que o ser humano pode almejar]» a oração subordinante de «a que o ser humano pode almejar», generaliza-se a toda a frase o valor interrogativo, porque, nessa subordinante, o tópico frásico, marcado por «o que», é um pronome interrogativo.

1 Os exemplos de Moura Neves (op. cit.) não apresentam vírgula antes de senão: «Neste momento, o governo não tem outra escolha SENÃO apertar o combate à inflação» (frase declarativa negativa); «Quem irá defendê-lo SENÃO a autoridade a quem foi confiado o poder de defendê-lo?» (frase interrogativa). Optei por seguir a prática destes exemplos, embora se aceite a...

Pergunta:

Prevê o novo acordo ortográfico, na sua Base XIX, 1, f), que «A letra minúscula inicial é usada nos axiónimos/axiônimos e hagiónimos/hagiônimos (opcionalmente, neste caso, também com maiúscula): senhor doutor Joaquim da Silva, bacharel Mário Abrantes, o Cardeal Bembo; santa Filomena (ou Santa Filomena)».

A questão prende-se com o uso de abreviaturas nestes casos, quer quando obrigatórios, quer quando opcionais. Devem também grafar-se em minúsculas?, de onde teremos: «sr. dr. Joaquim da Silva», «s. António», etc.

Agradeço a atenção.

Resposta:

Não há normas claras e consensuais. O Vocabulário Ortográfico do Português é omisso sobre o uso de maiúsculas e minúsculas nas abreviaturas. No entanto, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Porto Editora apresenta as abreviaturas em questão com maiúscula inicial: Dr. e Sr. O VOLP da Academia Brasileira de Letras indica S.res e S.ras, mas antes regista s.r, com minúscula.

Ora bem, considero que uma maneira de definir o uso de maiúsculas e minúsculas iniciais nestas abreviaturas seria o de tornar menos arbitrário o critério opcional aplicado às palavras que as desenvolvem, assim: minúscula inicial em simples referência aos detentores desses títulos abreviados («vi o dr./sr. Sousa, o teu vizinho, ontem»); com maiúscula inicial, por sinal de de respeito, quando nos dirigimos a essas pessoas ou mesmo quando as referimos, num contexto de comunicação formal («Prezado Dr. Sousa...»; «tendo contactado o Dr. J. Sousa, na sequência da reunião de...»).

Pergunta:

Em linguagem científica é comum a falta de correspondência de termos estrangeiros (nomeadamente do inglês) para a língua portuguesa. Neste caso, a dúvida surge com as palavras overexpressed e underexpressed, que reflectem uma ideia de expressão anormalmente aumentada ou diminuída, respectivamente. Quais são as alternativas para o português?

Resposta:

O consulente não nos explica em que área de actividade se usam os termos ingleses em questão. Mas podem ser criados os neologismos sobrexpressar ou sobre-expressar, à semelhança de sobrestimar e sobre-estimar, e subexpressar, conforme subentender.

Refira-se que a consulta do Linguee faculta uma única ocorrência de overexpressed, em cuja tradução para português se optou por uma versão livre do original em inglês:

«This molecular receptor of products which stimulate the growth of the cancer, in the case of being present in abnormally high quantities (overexpressed) [...]»

«Esta molécula receptora de produtos que estimulam o crescimento do cancro, no caso de estar presente em quantidade anormalmente elevada (sobrecarga) [...]»

Neste caso, preferiu-se uma palavra de uso consolidado, sobrecarga. Esta solução permite também incluir sobrecarregar e seu particípio passado sobrecarregado, bem como criar palavras não dicionarizadas, mas bem formadas, como subcarga, subcarregar e subcarregado.

Em suma, não posso dar uma resposta mais clara e directa, porque, sem identificação do contexto, várias soluções se perfilam.

Pergunta:

Qual a origem da expressão «resvés Campo de Ourique»?

Obrigada.

Resposta:

Transcrevo a explicação dada por Orlando Neves, no seu Dicionário de Expressões Correntes (Lisboa, Editorial Notícias, 2000):

Uma das explicações mirabolantes para esta frase1 dá-a como tendo origem no lago de sangue que ficou em Ourique, na célebre batalha de D. Afonso Henriques contra os Mouros.

A acepção em que se usa está ligeiramente deturpada. Hoje, ela é sinónima de «à justa, à tangente, ao pé de». Mas a significação primeira foi a comparação com algo plano, liso, nivelado, raso. O que se compreendia, porque o bairro lisboeta conhecido como «Campo de Ourique» era, antes de o terreno ser urbanizado, um vastíssimo planalto, onde se plantava trigo que abastecia a maior parte das padarias da cidade.

Refira-se que resvés significa, como adjectivo, «que é exacto, justo» e, como advérbio, «rente», «na medida certa, na conta» (Dicionário Houaiss). 

1 O autor deve querer dizer «expressão».

Pergunta:

Nas frases «esse livro é igual ao meu» e «o seu livro é igual ao meu», a impressão que eu tenho é de que no primeiro exemplo o «o» antes de «meu» seria um pronome demonstrativo, e na segunda, um artigo definido. Justifico tal posição pelo fato de que na primeira frase o primeiro pronome é outro demonstrativo (esse) e a segunda frase inicia com artigo. Concluo isso através do que se me apresenta como paralelismo na frase. Há respaldo teórico para essa minha, digamos, opinião? Coincide com a teoria gramatical que por vezes é divergente entre os autores em alguns pontos?

Na verdade, pesquisando na Internet, percebi que há posições divergentes até mesmo em relação à definição de pronome possessivo adjetivo/substantivo. Há quem diga que numa frase como «Pegue seu ônibus, que eu pegarei o meu», o segundo «meu» seria substantivo, já que não antecede nome, e outros que dizem que o nome (substantivo) está subentendido, e que por isso, então, seria um pronome adjetivo.

Leigo na área, e no entanto interessado, formulei algumas hipóteses, e gostaria que respondessem às minhas questões incluídas nas minhas hipóteses. Ei-las:

1) No caso de se considerar o «meu» nas frases anteriormente citadas como um pronome possessivo adjetivo, haveria duas possibilidades para tal. a) O «meu» estaria adjetivando um substantivo subentendido no contexto, e o «o» seria um artigo definido, e tanto o artigo «o» como o pronome adjetivo «meu» desempenhariam a função de adjuntos adnominais do substantivo subentendido. b) O «meu» serviria como um pronome adjetivo posposto ao pronome substantivo demonstrativo «o», e assim estaria o adjetivando.

2) No caso de se considerar o «meu» nas frases anteriormente citadas como um pronome possessivo Resposta:

Nos casos em apreço, a literatura não tem diferenciado a classe nem a função da forma o, associada ao possessivo meu, em casos como o das duas frases. Normalmente, considera-se que esse o é um artigo definido, quer acompanhe um pronome possessivo («o meu») quer se junte a um adjectivo numa construção elíptica («estou a usar o casaco velho, porque não encontro o novo», onde «o novo» = «o casaco novo»).

Penso que as ilações retiradas pelo consulente derivam da constatação de uma propriedade que é comum a demonstrativos como esse e aos possessivos: a função deíctica. O valor deíctico de esse, o e meu remete para as coordenadas espaciais de uma situação de comunicação — como é o caso dos demonstrativos — ou para os intervenientes nessa situação — marcados pelos pronomes eu e tu e pelos respectivos possessivos.

Quanto a meu, pronome possessivo substantivo (em Portugal, pronome possessivo), e meu, pronome adjectivo possessivo (em Portugal, determinante possessivo), trata-se de uma distinção da gramática tradicional (cf. Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, págs. 277 e 319). Deste ponto de vista tradicional, encara-se o o associado ao possessivo meramente como artigo definido (cf. Paul Teyssier, Manual de Língua Portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 1989, pág. 134/135).

Noutra perspectiva, M.ª Helena Mateus et al., na