Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber se está correto dizer "relise" ao invés de "release" para o texto jornalístico enviado por assessorias de imprensa.

Grata.

Resposta:

Parece tratar-se de um aportuguesamento espontâneo de release (ou press release), «material informativo distribuído entre jornalistas antes de solenidades, entrevistas, lançamentos de filmes etc., com resumos, biografias, dados específicos que facilitem o trabalho jornalístico» (Dicionário Houaiss). A forma "relise" pode ter sido criada por ignorância da grafia original da palavra em inglês, mas afigura-se um aportuguesamento ortográfica, fonética e morfologicamente legítimo. Só não está é ainda registado nem em dicionários, nem em prontuários, pelo que me parece mais prudente continuar a escrever release, em itálico ou entre aspas.

Pergunta:

Gostaria de saber se ano pode ser considerado nome colectivo. Obrigada pela ajuda!

Resposta:

Embora a palavra ano possa ser definida como «conjunto de 12 meses» ou «conjunto de 365 dias (ou 366, se for bissexto)1 as obras que consultei2 não o registam como substantivo colectivo. Eu diria que ano como nome não é colectivo, até porque leio num estudo sobre substantivos colectivos o seguinte:

«Os entes contínuos não formam grupos: não se pode tomar como elemento o que é simples medida (dia, ano, verso, etc.). Portanto, não são coletivos termos como TRIÊNIO, LUSTRO, SÉCULO, SEXTILHA, TERCETO, etc. De outro modo, e em arrepio do sentimento lingüístico, teríamos que aceitar como coletivos vocábulos como DIA (24 horas), HORA (60 minutos), QUILO (mil gramas), QUILOWATT (mil watts), QUILÔMETRO (mil metros), etc.» (José Luiz Mercer, "Breve reflexão sobre o substantivo coletivo", Letras, 28, 1979, pág. 139).

Ou seja, ano não é nome colectivo porque a sua subdivisão em meses ou dias não corresponde a elementos individualizados mas, sim, a segmentações numa entidade contínua que é o tempo.

Esta argumentação pode ser discutível, porque parece mais filosófica do que linguística. Seja como for, devo observar que, no contexto escolar, teria o cuidado de apenas trabalhar com palavras acerca das quais gramáticas, dicionários e prontuários mostram consenso quanto a classificá-las como substantivos colectivos.

1  O Dicionário Terminológico define nome colectivo como «[o] que se aplica a um conjunto de objectos ou entidades do mesmo tipo».

2

Pergunta:

Após a promulgação do Acordo Ortográfico (2008), no Brasil e nos países lusófonos, observei, quanto à palavra pé de moleque, agora, grafada sem hífen, o seguinte:

(1) A palavra pé de moleque, sem hífen, portanto, seguindo as prescrições da base XVI do Acordo Ortográfico (1990), lematizada como entrada (lema) na página 964 do Dicionário Escolar da Língua Portuguesa [Como a nova ortografia da língua portuguesa] (2.ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional 2008).

(2) A palavra pé de moleque, sem hífen, portanto, seguindo as bases do Acordo Ortográfico, lematizada como subentrada na página 1453 do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa [Com a nova ortografia da língua portuguesa] (Rio de Janeiro: Instituto Houaiss de Lexicografia/Objetiva, 2009). Vale lembrar que como subentrada é classificada como locução e não substantivo masculino ou palavra composta.

(3) Na página 631 do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) [da Academia Brasileira de Letras, ABL], pé de moleque aparece sem hífen, com status de entrada, seguindo, também, as bases do Acordo Ortográfico e classificada como substantivo masculino.

As duas ocorrências, no meu entendimento, tais implicações importantes para a lexicografia e análise linguística da unidade léxica pé de moleque: a) como entrada, deve ser, morfologicamente, classificada como substantivo composto e b) como sube...

Resposta:

Começo por fazer um reparo: a discussão sobre o uso do hífen em compostos e locuções, como é o caso de pé-de-moleque/«pé de moleque», relaciona-se não com a Base XVI mas, sim, com a Base XV do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90). Mas a questão do consulente é extremamente pertinente, porque, apesar de os dicionários referidos estarem de acordo quanto à perda do hífen em pé de moleque e de outras palavras que incluem elementos de ligação, o tratamento lexicográfico destas formas, como se vê, varia. Esta divergência tem três vertentes que passo a comentar:1

1. Ao perder o hífen, pé de moleque deixa de ser palavra composta para se tornarem uma sequência de palavras gráficas. Acontece que um dos critérios de identidade mais consensuais na tradição lexicográfica portuguesa e brasileira é o de a forma de citação dever corresponder a uma palavra gráfica (sequência de caracteres delimitada por espaços em branco ou sinais de pontuação). No entanto, a Base XV, 6.º, do AO90 parece estipular que uma série de formas de citação perdem o hífen, passando de palavras gráficas a sequências de palavras gráficas. Assim, em duas das obras mencionadas pelo consulente, como aliás noutras — o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Porto Editora e o Vocabulário Ortográfico do Português (VOP) —, não se retirararam da nomenclatura as palavras que caem sob acção...

Pergunta:

Surgiu-me uma dúvida relativamente à família de palavras de Natal...

Natal: natalício, natalino, natalidade...

Entram nomes próprios na família de palavras? Por exemplo, Natália?

Aguardo resposta.

Resposta:

A resposta é um tanto ambivalente, porque a noção de família de palavras pode revelar-se vaga.

Normalmente, não se incluem nas famílias de palavras os nomes próprios pessoais, porque o radical que possam ter em comum com um conjunto vocabular não se enquadra nos processos activos de formação de palavras. Essa relação releva antes da etimologia, fazendo parte da história do nome e, em última análise, da própria língua. Esta é a conclusão que se pode tirar da definição de família de palavras que é feita por Olívia Maria Figueiredo e Eunice Barbieri de Figueiredo, em Dicionário Prático para o Estudo do Português (Porto, Edições ASA, 2003):

«Pertencem à mesma família de palavras o conjunto de palavras que partilham o mesmo radical e evocam a mesma ideia.»

Nesta perspectiva, embora o radical nat- seja comum a Natal, natalício, natalidade, por um lado, e Natália1, por outro, este nome acaba por não fazer parte da mesma família, porque não designa a ideia de "nascimento" (de Jesus ou de outra pessoa qualquer).

Contudo, no Dicionário Terminológico entende-se família de palavras como «[c]onjunto das palavras formadas por derivação ou composição a partir de um radical comum», o que dá azo a alargar a definição deste conceito, de modo a incluir nomes próprios pessoais nas famílias de palavras. Nesse caso, poder-se-á dizer que Natália emparceira com Natal, natalício e natalidade.

1 «Do lat[im] Natalia, der[ivado] de nata...

Pergunta:

Estou a fazer um trabalho sobre factores de mudança linguística e gostaria que me ajudassem a definir melhor factores de mudança externa.

Obrigado.

Resposta:

A pergunta pede a abordagem a um tema cuja complexidade não cabe no âmbito do Ciberdúvidas, pelo que me limitarei a traduzir um pequeníssimo artigo do Glossary of Historical Linguistics (Edimburgo, Edinburgh University Press, 2007), de Lyle Campbell e Mauricio J. Mixco:

«[fatores externos de mudança são] fatores que ajudam a explicar as mudanças linguísticas que se encontram fora da própria estrutura linguística e do organismo humano. Compreendem os usos expressivos da língua, as avaliações sociais positivas e negativas (prestígio, estigma), os efeitos de literacia, a gramática prescritiva, as políticas de educação, os decretos políticos, o planeamento linguístico, o contacto entre línguas, entre outros aspectos.»1

Também de Lyle Campbell, pode consultar Historical Linguistics An Introduction (Cambridge, Massachussets, MIT Press, 1998). Outra obra que posso recomendar é a de Brian D. Joseph e Richard D. Janda (eds.), The Handbook of Historical Linguistics, Malden, Oxford e Carlton, Blackwell Publishing, 2003).

1 Tradução livre de: «external causal factors, external factors. Factors taht help to explain language changes that lei outside the structure of language itself and outside the human organism. They include such things as expressives uses of language, positive and negative social evaluations (prestige, stigma), the effects of litteracy, precriptive grammar, educational policies, political decree, language planning, langauge contact and so on [...].»