Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Cada vez mais ouço/leio a utilização do verbo haver, mais no Brasil, menos em Portugal, quando representando um período de tempo, flexionado a acompanhar o outro verbo duma frase.

Por exemplo: «O preso cumpria pena havia dois anos.»

Sempre soube que não se devia flexioná-lo e dizer: «O preso cumpria pena há dois anos.»

Agradeço que me seja esclarecida esta dúvida.

Resposta:

Pode-se e é correto flexionar a forma no pretérito imperfeito do indicativo para marcar um intervalo de tempo.

Cabe, aliás, observar que a tradição purista – no Brasil e em Portugal – recomendava que, nas expressões temporais, haver ocorresse no imperfeito do indicativo sempre que o enunciado se reportasse a uma situação passada. Cite-se, por exemplo, o Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (1958), de Vasco Botelho de Amaral:

«Notem-se estes passos: «... a fortificação, em que trabalhava havia dias...» (Frei Luís de Sousa, Vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, I, pág. 231, ed. 1850). «... havia mais de trinta anos desde que seu cunhado, que estudava para padre, morrera ético» (Camilo, A Brasileira de Prazins, 3.ª edição, pág. 6). Em tais exemplos, a expressão de circunstância temporal está com o verbo haver no pretérito, em correspondência com o tempo usado no verbo principal.

Modernamente, contra a índole da língua dos melhores escritores e do povo, com frequência se perde de vista o paralelismo das formas verbais, e redige-se: " dias que se trabalhava". Evite-se esta construção.»

Mais de sessenta anos depois de Botelho de Amaral ter escrito estas linhas, a tendência em Portugal é usar sempre – tanto formal como informalmente –, mesmo que a expressão temporal se articule com uma frase com o verbo nos tempos do passado. Ou seja, é invariável e está plenamente gramaticalizado para marcar intervalos temporais: «o preso cumpria pena há dois anos»; «o preso fora condenado há dois anos».

Nas fontes brasileiras, mantém-se o preceito r...

Pergunta:

A ortografia portuguesa contempla a possibilidade de que se sucedam mais do que um prefixo hifenizado em palavras compostas sem elementos de ligação (p. ex. vice-diretor-executivo ou ex-vice-diretor-executivo).

Não obstante (e por nunca me ter deparado com um caso desta natureza), ter-se-ia também de hifenizar a junção de uma unidade lexical autónoma (um nome) a uma palavra composta (sem elemento de ligação)?

Por exemplo, temos coleção-cápsula (uma pequena coleção especial de vestuário dentro da coleção mais geral da loja) e, consequentemente, teríamos “guarda-roupa-cápsula” ou “guarda-roupa cápsula” (esta última, talvez, porque poderia tornar mais claro que cápsula modifica restritivamente a unidade completa guarda-roupa” e evitaria outras possibilidades de relações de modificação entre os seus elementos?!)?

Agradeço, desde já, a vossa resposta!

Resposta:

Não parece haver uma resposta inequívoca à questão.

O caso apresentado é muito especial e envolve nomes usados como se fossem adjetivos modificadores, como é o caso de mãe em casa-mãe, ou base em ideia-base. Nestes casos, os normativos ortográficos do português não têm sido claros, mas atendendo à prática de hifenização destes usos (ver mãe e base no Dicionário Houaiss, que os classifica como «determinantes específicos»), infere-se que, em associação a um nome composto hifenizado, se junte mais um hífen com esse tipo de palavras. Assim, escrever-se-á guarda-roupa-cápsula.

Como foi dito, trata-se, porém, de uma área menos vigiada pelos preceitos ortográficos, com margem para certa variação, até porque cápsula não parece ter o mesmo uso corrente que as formas hifenizadas de mãe e base.

 

N. E. (01/06/2022) – O uso acima comentado é uma transposição do inglês capsule em expressões «capsule wardrobe», traduzível por «guarda-roupa essencial». Neste contexto, o inglês capsule é referido a um conjunto de peças de roupa consideradas essenciais. É uma importação que não parece figurar nos dicionários de português e cuja adoção (discutível) não corresponderá a uma verdadeira necessidade, visto expressões como «roupa essencial» e «guarda-roupa essencial», entre outras construções vernáculas possíveis, terem o mesmo significado e a mesm...

Pergunta:

Que palavras além de dâblio têm um â (a com acento circunflexo) antes de consoantes não nasais?

Resposta:

É de facto o único caso em que a vogal a é fechada e não é seguida de consoante nasal.

Note-se, porém, que dâblio – «vê duplo, vê dobrado», adaptação do ingês double u, com o mesmo significado–, é, com acento circunflexo, uma grafia exclusiva de Portugal (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). Além disso, a forma dâbliu, também com acento circunflexo, mas u final, encontra registo, por exemplo, no Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (1958), de Vasco Botelho de Amaral, que a considerava «designação inglesada da letra W».

Nas fontes brasileiras, as formas registadas são dáblio e dábliu, portanto, com á marcado com acento agudo, conforme se escreve no Dicionário Houaiss, que  acolhe ainda a variante dabliú, com acento no u final (ver igualmente o dicionário Michaelis).

Pergunta:

Quando estabelecemos os pontos de uma ordem de trabalhos, os mesmos podem ser indicados em numeração romana (i, ii, iii, iv)?

Agradeço muito o vosso esclarecimento.

Resposta:

A numeração romana – em minúsculas, como se exibe na pergunta1 – costuma usar-se em subalíneas, e não diretamente na divisão de um texto por secções ou na enumeração dos pontos de uma ordem de trabalhos. Neste último caso, o emprego mais corrente é com algarismos árabes.

Por exemplo, de acordo com o Guia de Legística para a Elaboração de Atos Normativos da Assembleia da República (p. 54), as alíneas são indicada por letras minúsculas e as subalíneas pela numeração romana em minúsculas. O critério é semelhante no Código de Redação Interinstitucional para uso do português nas instituições europeias, na secção dedicada à apresentação de enumerações, como é o caso da lista que constitui uma ordem de trabalhos:

«Os pontos de uma enumeração são numerados utilizando letras minúsculas seguidas de um parêntese para o primeiro nível, numeração romana em minúsculas seguida de um parêntese para o segundo nível e algarismos árabes seguidos de um parêntese para o terceiro nível. Os travessões são utilizados para o quarto nível:

    A presente diretiva aplica-se:
    a)
    […]:
    i)
    […]:
    1)
    […]:
    —
    […].

Excecionalmente, [...] os pontos são numerados utilizando algarismos árabes seguidos de um parêntese para o primeiro nível, letras minúsculas seguidas de um parêntese para o segundo nível e numeração romana seguida de um parêntese para o terceiro nível.»

Por outras palavras, não é hábito empregar a numeração romana no primeiro nível de enumeração, nem nu...

Pergunta:

No Brasil é muito comum dizer «igual eu» no sentido de «como eu» ou «como a mim». E também é muito comum o uso da figura de estilo elipse. Como exemplo, o emprego destes hábitos em uma frase seria:

«O João fala errado igual eu falo.» → «O João fala errado igual eu.»

Gostaria de saber se na variante do português de Portugal é incorreto este uso e, se sim, qual a forma correta de serem ditas frases como estas?

– O João fala errado igual eu. (O João fala errado igual eu falo.)

 – Ele pensa igual eu. (Ele pensa como eu.)

Obrigado.

Resposta:

Trata-se de um uso do Brasil que não parece ocorrer em Portugal – pelo menos, entre os falantes da variedade europeia.

Com efeito, atesta-se o uso conformativo de igual, equivalente a como e seguido de substantivo: «Ele come igual porco», «Maria sempre me tratou igual filho» (Dicionário UNESP do Português Contemporâneo, 2004). Igual pode também introduzir orações: «Andava de lá para cá, igual estivesse numa jaula» (Dicionário Houaiss)1.

Estas fontes não apresentam abonações de igual seguido de pronomes, mas o Corpus do Português evidencia que o uso conjuncional se associa a pronomes na forma de sujeito, no que parece configurar construções em que se omite o verbo (elipse):

(1) «Nesse sentido, o automatizado é a melhor coisa para quem pensa igual eu [penso].»

Não obstante, em Portugal, prefere-se a construção com como:

(1) O João fala mal como eu. (em Portugal, não é habitual «falar errado»)

(2) Ele pensa como eu.

Acrescente-se que dicionários elaborados em Portugal (Academia das Ciências de LisboaInfopédia e Priberam) não registam igual com valor conformativo.

 

1 No