Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual é a regência do verbo mentir?

Obrigado!

Resposta:

Tendo em conta a presença e o tipo de complementos, o verbo mentir1 é:

a) intransitivo – «Ela mentiu.»

b) transitivo indirecto – «Ele mentiu ao juiz.»

Como se vê em b), o verbo em causa pode seleccionar um complemento indirecto introduzido pela preposição a; do ponto de vista da gramática tradicional, dir-se-ia que esta é a regência do verbo. Note-se, porém, que este complemento surge eventualmente realizado pela forma de dativo dos pronome pessoal («ele mentiu-lhe»), o que indica tratar-se de um complemento indirecto (ver Dicionário Terminológico). Sendo assim, não é habitual falar-se de regência a respeito deste tipo de complemento, antes se aplicando esse termo aos complementos oblíquos, isto é, àqueles que, introduzidos por preposição, não admitem a substituição pelo pronome dativo, como é o caso de assistir em «assistiu à aula», que não permite *«assistiu-lhe».

1 Fontes consultadas: Winfried Busse, Dicionário Sintáctico de Verbos Portugueses, Coimbra, Livraria Almedina, 1994; Mário Vilela, Dicionário do Português Básico, Lisboa, Edições ASA, 1991.

Pergunta:

Deve dizer-se «Se Maomé não vai à montanha, vai a montanha a Maomé», ou «Se a montanha não vai a Maomé, vai Maomé à montanha».

Resposta:

A ordem correcta da frase é a seguinte:

«Se a montanha não vai a Maomé, vai Maomé à montanha.»

Conta-se que, tendo os árabes pedido a Maomé a realização de um milagre como prova do que ensinava, o profeta ordenou que o monte Safa viesse até ele. Como este não se deslocou, Maomé elogiou a misericórdia de Deus, porque assim a montanha não os tinha esmagado a todos, acrescentando: «Irei à montanha para agradecer a Deus por ter poupado uma geração de obstinados.» (cf. The Wordsworth Dictionary of Phrase and Fable, Londres, Wordsworth Editions, 1993).

Pergunta:

Apesar de estar a escrever do Brasil, sou nascido e vivi boa parte da minha vida no Porto, Portugal. Na minha infância e adolescência, em brincadeiras de rua, usei muitas vezes a palavra "passangas", junto com os companheiros de brincadeiras. Ela aparece na letra de uma canção de Rui Veloso, numa variante que eu desconhecia, "pessangas", mas com um significado implícito igual, isto é, referindo-se a um pedido de tréguas, de interrupção ou pausa na brincadeira. Não encontro nenhuma referência a esta palavra em dicionários ou enciclopédias. Será que me poderiam dar alguma orientação sobre a etimologia da palavra? Antecipadamente agradeço, enviando os meus cumprimentos pelo site e sua inequívoca utilidade.

Resposta:

Não foi possível traçar a etimologia desta palavra, que não se encontra registada nas fontes consultadas, que foram, a saber: Dicionário Houaiss; Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado; Grande Dicionário da Língua Portuguesa (Porto Editora); Dicionário da Língua Portuguesa (Porto Editora); Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa; Novo Dicionário de Calão, de Afonso Praça; Dicionário de Expressões Populares Portuguesas, de Guilherme Augusto Simões.

Nota: Transcrevemos uma nova informação de Jorge Esteves (a quem agradecemos pelo seu contributo) sobre esta palavra: «Pessanga ou pessangas (não “passangas", como menciona o consulente; expressão que, essa sim, não existe), é um jargão vulgar na região litoral norte, com especial incidência no calão tripeiro [do Porto] e que significa, pausa, descanso ou, mais apropriadamente, pedir tréguas (como, aliás, é perceptível na letra de Carlos Tê). Isto porque a expressão era (compreende-se o desuso...) frequentemente usada pelas crianças e adolescentes, nos seus jogos e brincadeiras (exemplos da apanhada, da bandeira, da bilharda, do esconde, ou, pelos outeiros e quintas dos arrabaldes, nas proximidades das escolas, as emocionantes guerras entre índios e cowboys).

Pergunta:

Na oração «Poluída que estava, a praia foi interditada», qual seria a classe gramatical da palavra que?

Resposta:

1 – A respeito da estrutura da frase em questão, assinalo que a articulação de «poluída que estava» com «a praia foi interditada» indica que, nesta oração, o estado de coisas referido é consequência da situação descrita pela primeira. Aceito, por isso, que «poluída que estava» é uma estrutura oracional que tem subentendido um valor de intensidade («(tão) poluída que estava») que permite interpretar «a praia foi interditada» como oração consecutiva.1

Refira-se que Joaquim Fonseca, num estudo sobre as orações consecutivas, menciona duas estruturas muito semelhantes àquela em discussão ("Pragmática e sintaxe-semântica das consecutivas", Revista da Faculdade de Letras, XI, Porto, 1994, págs. 47-50):

1. «De tão preguiçoso (que é), o Zé chega sempre atrasado às aulas.»

2. «Trabalhador como era, o Zé não parava um segundo.»

Em 1, saliente-se a possibilidade de omitir o que (não o classifico ainda) e o verbo; em 2, o que é substituído pela conjunção como.

Ora, estes exemplos levam-me a considerar que as formas mais adequadas da frase apresentada pelo consulente são:

3. «De tão poluída que estava, a praia foi interditada.»

4. «Poluída como estava, a praia foi interditada.» 

A frase 3 mantém estreita afinidade semântica com as frases 5 e 6, a seguir:

5. «A praia estava de tal maneira poluída, que foi interditada.»

6. «A praia, tão poluída que estava, foi interditada.»

Em 5, ...

Pergunta:

A respeito da questão intitulada O advérbio nomeadamente como «muleta da linguagem», não é este advérbio anglicismo de namely, perfeitamente dispensável e substituível?

Resposta:

É possível que nomedamente tenha visto um incremento no seu uso por causa de namely. Apesar disso, trata-se de um advérbio bastante antigo na língua portuguesa, com certo grau de polissemia, conforme se pode constatar por ocorrências no Corpus do Português, de Mark Davies e Michael Ferreira:

«Qvando alguû omẽ empresta a outro cauallo ou outra bestta en que uaa a alguu logar sabudo nomeadamente [«pelo nome»] [...]» (século XIII; Foro Real)

«[...] repreendeu as muitas maldades sem conto que ha em os homẽes, e nomeadamente  [«particularmente», «especificamente»] o mui grande desejo e sede que ham do ouro [...]» (século XV; Boosco Deleitoso)

«E de noite praticando com elles, lhes contou a ordem que guardava em se encomendar a Deos, de que muito se consolarão em o ouvir, começando pelo Papa e por todo o estado eclesiastico, pelos reys christãos, pelas Padres da Companhia e nomeadamente [«individualmemte»] por cada hum dos que estão em Japão, pela conversão dos infieis e principalmente pela d'el-rey de Bungo [...]» (século XVI; Luís Fróis, Historia de Japam)

«E declarando mais em particular os remédios cordiais que lhes aplicava, aponta nomeadamente [«especialmente», «particularmente», «especificamente] dois, que mais parecem receitados para o nosso cativeiro que para o de Babilónia [...]» (século XVII; Padre António Vieira, História do Futuro, 1667)

«Muitas mesmo se foram retirando, nomeadamente [«especialmente»] aquelas que afagavam alguma esperança, ou se julgavam com algum direito sobre o coração de Álvaro.» (século XIX, Bernardo Guimarães, A Escrava Isaura)

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