Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Quais seriam os gentílicos de Xanto e Mira, cidades da antiga região da Lícia, na Anatólia, sendo a primeira mencionada a capital da dita região?

Muito obrigado.

Resposta:

Não encontro formas dicionarizadas nem sei de formas que sejam correntes, até porque se trata de referentes mencionados só em contextos eruditos ou especializados. Mas, tendo em atenção o facto de existir uma povoação portuguesa com o nome de Mira, parece aceitável aplicar à cidade da Ásia Menor o mesmo gentílico: mirenses.

Já o caso de Xanto é diferente: não há forma consagrada nem existe sequer um topónimo homónimo ou parecido que permita estabelecer um paralelo. Ainda assim, seguindo o critério mais geral que é o de fazer derivar gentílicos pela adjunção dos sufixos -ense e -ês, obtemos "xantense" e "xantês", formas, cujo uso, no entanto, não posso prever como inevitável, já que "xantino" também se afigura possível.

Pergunta:

Qual seria o gentílico de Sardes, capital da antiga região da Lídia, na Anatólia?

Muito obrigado.

Resposta:

Para Rebelo Gonçalves (Vocabulário da Língua Portuguesa), é «inexacta a forma Sardes, decalque do fr[ancês] Sardes», pelo que a forma que aquele filólogo fixa é Sárdis, sem que registe paralelamente o respectivo gentílico. Como não encontro fontes que indiquem tal palavra, sugiro, neste caso, o recurso a uma perífrase: «os (naturais ou habitantes) de Sárdis». As formas sardónio, sardónico ou sardo, que poderiam ser os gentílicos procurados, são na realidade relativas aos naturais e habitantes da Sardenha (cf. Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Gostaria de saber como fica a utilização do hífen em pospositivos de origem tupi, como -mirim e -guaçu, com o novo acordo ortográfico. Exemplos: moji-mirim, moji-guaçu, biritibamirim, embu-mirim, embu-guaçu, apiaí-mirim, barueri-mirim, capivari-mirim, baquirivu-guaçu, jacaré-guaçu, taquari-guaçu, taquari-mirim, supucaí-mirim, etc.

[Notem, todavia, que] não estou interessado no uso feito pelos topônimos, que, em geral, não observam regra alguma. Gostaria de saber qual seria a regra correta, tanto a antiga quanto a moderna, para esses casos, quando consideramos esses substantivos meras palavras (ainda que não sejam observadas). Ou seja, se a palavra anterior termina em sílaba tônica, ou em determinada vogal, o uso seria, obrigatoriamente, com hífen ou tudo junto, a partir de agora? Segue minha pergunta anterior novamente (removi as letras maiúsculas para não pensarem que se trata de topônimos).

Obrigado.

Resposta:

Com os pospositivos -açu, -guaçu e -mirim, mantêm-se as condições de uso do hífen previstas pela anterior norma ortográfica. Assim:

1. No Vocabulário Ortográfico de 1943, Base IV, 4.º, determinava-se o seguinte1:

«Nos vocábulos formados por sufixos que representam formas adjetivas como açu, guaçu e mirim, quando o exige a pronúncia e quando o primeiro elemento acaba em vogal acentuada gràficamente: andá-açu, amoré-guaçu, anajá-mirim, capim-açu, etc.»

2. No novo Acordo Ortográfico, na Base XVI, 3.ª, mantém-se o mesmo critério: «Nas formações por sufixação apenas se emprega o hífen nos vocábulos terminados por sufixos de origem tupi-guarani que representam formas adjetivas, como açu, guaçu e mirim, quando o primeiro elemento acaba em vogal acentuada graficamente ou quando a pronúncia exige a distinção gráfica dos dois elementos: amoré-guaçu, anajá-mirim, andá-açu, capim-açu, Ceará-Mirim

Isto não impede que existam formas aglutinadas, quer em nomes próprios (topónimos), quer em substantivos comuns: Biritibamirim (São Paulo), Mojimirim (São Paulo), acará-açu/acarauaçu/acarauçu/acaraçu2 (cf.

Pergunta:

O verbo soar, no trecho de Os Lusíadas «E como por toda África se soa,/Lhe diz, os grandes feitos que fizeram», deveria estar no plural, pois são os feitos que soam, ou está correcto como está, pois não são os feitos que soam mas sim alguém que os faz soar?

Resposta:

Trata-se de dois versos da estrofe 103 do canto II de Os Lusíadas (nas consultas, convém sempre referenciar devidamente a passagem a analisar) que têm a seguinte particularidade: ilustram como já no século XVI o pronome se era usado como sujeito indeterminado, equivalente ao pronome indefinido alguém, e não como partícula apassivante ou apassivadora.

Com efeito, se se tratasse de partícula apassivante, o verbo soar, usado transitivamente, teria de concordar com «os grandes feitos», que é o sujeito na construção passiva correspondente: «soam-se [= enaltecem-se] os grandes feitos» = «os grandes feitos são soados». Na verdade, o que se passa é que tal concordância não se verifica, mantendo-se o verbo no singular, apesar da sua transitividade, o que indicia que a concordância se faz com se, equivalente a alguém: «soa-se os grandes feitos» = «alguém soa os grandes feitos».

Como já se tem dito aqui, do ponto de vista normativo, há opiniões desencontradas sobre a legitimidade da construção de se indeterminado com verbos transitivos. De qualquer modo, as duas construções têm sido atestadas pela descrição linguística do português actual e, como vimos, de fases mais antigas da história da língua.

Pergunta:

Gostaria de saber o porquê de o mirandês ter sido considerado língua e como se chega a esse patamar; e também se o dialecto açoriano poderia ser considerado língua, e, se não, quais os requisitos que faltariam. É porque sinceramente vejo no mirandês distorções de palavras, aquilo que também encontro no açoriano. Ou seja, como é possível adivinhar, a minha questão final seria: se mirandês é língua, porque não o é também o açoriano, ou até o madeirense (embora não esteja muito por dentro desta última)?

Resposta:

1. Do ponto de vista genético, o mirandês não faz parte do mesmo sistema linguístico histórico que o português: os dialectos mirandeses fazem parte do sistema dialectal asturo-leonês, e o português-padrão e normativo pertence ao sistema dialectal galego-português.

2. Não há um dialecto açoriano mas vários, em função das ilhas existentes e de certa variação numa mesma ilha (por exemplo, São Miguel, que é a mais extensa). Na Madeira, a variação não será tão ampla, e por isso se fala no dialecto ou falar madeirense. Ora bem, considera-se que estes dialectos constituem parte do sistema dialectal galego-português, aceitando os falantes dos mesmos que a variedade que usam é uma fracção desse conjunto, que em Portugal tem expressão institucional mediante uma norma transregional, usada na administração do país. Para serem línguas, teriam de atravessar um processo de autonomia pelo qual as comunidades que os usam reivindicariam uma diferenciação com expressão institucional. De certo modo, foi este o processo do mirandês: no dealbar do século XX, Leite de Vasconcellos revelou à comunidade científica a existência de uma série de falares de origem leonesa na Terra de Miranda; esses dialectos tinham características gramaticais e lexicais comuns que contrastavam quer com os dialectos portugueses transmontanos quer com a norma portuguesa; a estreita afinidade dos dialectos mirandeses levou a falar-se em mirandês em geral; os habitantes da Terra de Miranda começaram a valorizar o mirandês como traço da sua identidade; e o processo culminou no reconhecimento do mirandês como língua oficial regional, com os seus próprios instrumentos de regulação (por exemplo, uma ortografia).

É por isso que dizemos que o