Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
432K

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Como bem se sabe, o género do nome bebé não está marcado morfologicamente, mas sim sintaticamente através do uso, por exemplo do artigo definido («o bebé»/«a bebé»).

Não obstante, casos há em que não é possível recorrer a essa diferenciação através de um determinante, pelo que é habitual, ainda que também sintaticamente, estabelecer a diferença de género com o recurso à justaposição dos nomes menino ou menina (p. ex.: «Vende-se roupa de "bebé menina”»).

Ainda que seja infrequente encontrar tal composição hifenizada, não estaríamos perante um caso de uma palavra composta através da justaposição de dois elementos de natureza nominal que, além de manterem o seu próprio acento, formam também uma unidade sintagmática e semântica (à semelhança da já lexicografada bebé-proveta), pelo que deveria ser grafada com hífen (p. ex. “bebé-menina”/“bebé-menino”)?

Agradeço, desde já, a vossa resposta e atenção!

Resposta:

O que é exposto pelo consulente constitui uma excelente fundamentação para o uso do hífen em associações lexicais que incluam menina e menino. Contudo, à luz da ortografia em vigor e dos atuais registos dicionarísticos1, não se pode dizer que o hífen seja estritamente obrigatório nestas associações lexicais.

É verdade que, a reforçar a necessidade de um hífen, existe a noção de determinante específico, que tem aceitação na lexicografia brasileira e abrange, por exemplo, o uso de mãe como segundo elemento na formação de compostos. Leia-se, a propósito desta palavra, a nota de gramática e uso que lhe dedica o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (1.ª edição, 2001, s. v. mãe):

«vindo após outro substantivo, ao qual se liga por hífen, [mãe] é um determinante específico e significa "fonte", "origem" (navio-mãe, idéia-mãe, célula-mãe), "geratriz" (rainha-mãe), "principal", "mais importante" (agulha-mãe, nave-mãe); anteposto, significa "que é mãe" ("a mãe-leoa defende até a morte seus filhotes"), "origem", "lar" (mãe-pátria, mãe-Terra

Ainda segundo o Dicionário Houaiss, também o vocábulo mulher se emprega como determinante específico, mas, neste caso,nem sempre com hífen:

«empregado também apositivamente (determinante específico que significa "relativo à feminilidade, às qualidades ou aos atributos femininos, ou o aspecto ou os elementos femininos da personalidade") em: a) locuções: menina mulher; filha mulher; b) comp...

Pergunta:

Antes de mais, muito obrigado pelo vosso trabalho e competência, que ao longo dos anos me têm sido muito úteis. O vosso serviço é uma belíssima escola!

Gostaria de perguntar se é possível utilizar a palavra "capelã" como feminino de capelão.

Tenho procurado – possivelmente mal –, mas não tenho encontrado o termo.

Muito obrigado.

Resposta:

Agradecemos com satisfação as suas palavras de apreço.

A forma capelã está correta, mas a sua ausência dos dicionários parece dever-se a razões extralinguísticas, talvez ligadas  ao facto de serem ainda raras as mulheres a exercerem funções de capelão (ou, por outra, capelã).

Nas fontes consultadas, não se assinala que, no contexto da Igreja Católica, seja possível possível atribuir a responsabilidade dos ofícios religiosos de uma capela a uma mulher. Contudo, no contexto das igrejas protestantes, nota-se que ocorre a forma capelã.

Pergunta:

Pensava eu que só em Portugal se dizia «Para/a si, de si, por si, consigo» fora do valor reflexivo, mas leio Nelson Rodrigues e tenho uma surpresa com a reprodução dum diálogo:

«Dr. Alceu, reze menos por mim. Se quiser, não reze nada. Mas seja meu amigo. Apenas isso: — meu amigo. E, se insiste em rezar, vamos fazer uma permuta: o senhor reza por mim e eu rezo POR SI.»

A crônica foi escrita em dezembro de 1967, mas o facto deve ter ocorrido uns dez anos antes, pelo que conheço do coleguismo de Alceu Amoroso e Nelson Rodrigues.

A primeira pergunta é: o autor estava imitando um procedimento típico de Portugal ou já existia no Rio à época? Fico um tanto dúbio porque até a primeira metade do século XX lá ainda se usava a segunda pessoa do singular corretamente. Quando surgiu este valor do pronome si em Portugal? Isto é, quando deixou de ter só valor reflexivo?

Resposta:

Agradecemos a informação.

No Corpus do Português, não encontramos ocorrências de si com valor de 2.ª pessoa do singular anteriores ao século XIX, que, como se espera, se detetam em textos de autores portugueses oitocentistas (Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis).

Não obstante, também se pode identificar este uso em cartas de Machado de Assis, o que pode sugerir que, pelo menos, na cidade ou na região do Rio de Janeiro, não era desconhecido.

Pergunta:

Gostaria de saber o significado da palavra "trapulhar", que encontrei em uma carta de minha bisavó de 1902 na seguinte frase:

«A Deia manda-te dizer que tem sentido muita falta dos noivos para trapulhar.»

Envio a página da carta original onde se pode ver a frase que citei e o verbo misterioso (ver infra).

Santa Maria (da Boca do Monte), onde nasceu e viveu a juventude minha bisavó, é uma cidade do interior do Estado do Rio Grande do Sul, com maciça colonização alemã, bem como numerosa comunidade afro-brasileira.

Talvez o termo seja um "regionalismo", vá saber...

Agradeço a atenção.

Resposta:

Nas fontes consultadas, não se encontram registos do verbo em questão. No entanto, há pistas que,apesar de vagas, apontam quer para uma amálgama de trafulha e atafulhar quer  para o contacto ou com o castelhano ou com os dialetos aragoneses e catalano-valencianos.

Assim, regista-se em castelhano o nome trápala no sentido «pessoa que fala muito e diz coisas sem substância» (cf.dicionário da Real Academia Espanhola). Poderá conjeturar-se a derivação de uma forma como "trapalear", eventualmente alterada, de tal maneira, que resultou em "trapulhar". Nada disto encontra apoio nos dicionários consultados para esta resposta.

Contudo, documenta-se nos dialetos catalães e valencianos a forma trapulla, «batotice»:

«He sentit tranfullero ‘trompós’ a parlants de Sevilla. Per aquesta via deuen anar també entrampullar ‘v. entrampar’ del DM Gadea (1891) i trapulla ‘fullería’ al Vilar (els Serrans, Llatas 1959). Cf. trapull ‘agitació de persones o de coses en moviment’ (DCVB, Tortosa) i +atrafullat ‘atrafegat, atabalat’ (Moreira, Massip 1991: 300).  (Josep Martines, L'aragonés i el léxic valencià, Caplletra 32 (Primavera 2002), pp. 157-201 p. 183)

[tradução livre: «Ouvi tranfullero 'enganador' a falantes de Sevilha. Por esta via devem andar também entrampullar 'enganar' do DM Gadea (1891) e trapulla 'trapacice" em Vilar (Els Serrans, Llatas 1959). Cf. trafull 'agitação de pessoas ou coisas em movimento' (DCVB Tortosa) e atrafullat 'atarefado, empatado' (Moreira, Massip 1991:300).]'

Ao ler estas linhas, não se resiste a relacionar com "trapulhar" o nome trafulha, «vigarice, aldrabice», do qual não é impossível derivar "trapulhar"...

Pergunta:

Encontro nos dicionários online os verbos irmanar e o seu antónimo desirmanar.

Encontro também a palavra irmanação, mas "desirmanação" já me é dada como inexistente.

Podem esclarecer-me?

Muito obrigado.

Resposta:

Por causa da sua formação, resultante de uma regra que os falantes conhecem e aplicam sem dificuldade, há palavras derivadas como desirmanação, que os dicionários muitas vezes não registam -- um pouco como acontece com os diminutivos que só têm registo quando adquirem algum significado mais especial.

Sendo assim, diga-se que desirmanação é palavra bem formada e correta. O facto de não figurar nos dicionários não é indicativo de ser desaconselhada.