Edite Prada - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Edite Prada
Edite Prada
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Edite Prada é consultora do Ciberdúvidas. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português/Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; mestrado interdisciplinar em Estudos Portugueses, defendido na Universidade Aberta de Lisboa. Autora de A Produção do Contraste no Português Europeu.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Numa receita culinária, qual das expressões é a correcta?

«Juntar os legumes e deixar cozinhar um pouco», ou «Juntar os legumes e deixar a cozinhar um pouco»? Ou estão ambas correctas?

Resposta:

No contexto que refere, o mais adequado é «deixar cozinhar» (embora, pessoalmente, prefira «deixar cozer»…)

A expressão «deixar a cozinhar» adapta-se, a meu ver, a situações em que se coloca algo ao lume e se vai fazer outra coisa entretanto, do tipo: «Deixo os legumes a cozinhar/cozer e vou atender o telefone.»

Bom trabalho!

Pergunta:

O aumentativo e o diminutivo das palavras em alguns casos são muito controversos.

O que consideram correcto em relação a "palavrona" como aumentativo de palavra? Eu considero correcto "palavrão", mas fico em dúvida em relação à primeira.

Resposta:

Cunha e Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo, página 91, referem que o sufixo aumentativo -ão se realiza no masculino mesmo quando o nome a que se associa é feminino. Referem ainda que só nos adjectivos é comum a ocorrência dos dois géneros. Dão como exemplo chorão-chorona e solteirão-solteirona.

Apesar disso, há nomes em que ocorre, pontualmente, o feminino do aumentativo, como por exemplo no caso de mulher, que tem três aumentativos: mulheraça, mulherão e, mais raro, mulherona. Note-se, no entanto, que o sufixo -ona não ocorre como distintivo de género, como acontece nos adjectivos.

No caso de palavra, por analogia com mulher, poderá, em contextos informais, aceitar-se o aumentativo palavrona, que, todavia, não está, à data em que este texto é feito, identificado como palavra do português na Base de Dados Morfológica de Português, Mordebe.

No caso de palavrão, embora a acepção mais comum nos conduza para o sentido de «palavra obscena», quando devidamente contextualizado parece-me o aumentativo certo, se quisermos fugir à expressão analítica «palavra grande» ou outra equivalente.

Pergunta:

Enquanto estudante de tradução, gostaria de saber se a expressão «estou barado!» é já aceite na escrita portuguesa, ou se permanece ainda uma marca do discurso oral.

Resposta:

A expressão «estar/ficar varado», no sentido de «estar/ficar fortemente surpreendido ou impressionado com algo», ocorre em textos de vários autores. Cito alguns com exemplos extraídos do Corpus do Português:

«Eu cá até pensei: bem, lá fizeram as pazes. Nisto: pum, pum. Dois tiros. Fiquei varado. Até caí com o susto.» Alberto Lopes, A Última Estação

«Numa dessas noites, eu saía de uma confeitaria do Rossio, de comprar trouxas-de-ovos para levar à minha Adélia, quando encontrei o Doutor Margaride, que me anunciou, depois do seu abraço paternal, que ia São Carlos ver o Profeta. – E você, vejo-o de casaca, naturalmente também vem.. Fiquei varado.» Eça de Queirós, A Relíquia

«Tenha compaixão.
– Passa fora, gatuno! O que tu querias nesse espinhaço bem sei eu.
Ele recuou aterrado, convulso. E varado por aquela violência ficou soluçando no meio da rua solitária.» Fialho de Almeida, A Ruiva

«E para a outra vez não é só ela quem prova da "canja", são os dois! Os dois eram a esbofeteada e o Antunes. O Antunes estava varado. Não percebia patavina.» José de Almada Negreiros, Nome de Guerra

A expressão «estar/ficar varado» surge a primeira vez no séc. XV, com o sentido de «ser trespassado por lança», ou para referir um navio que esteja em seco, na praia. Destas duas acepções vir-lhe-ão os sentidos abstractos que lhe atribuímos de «ficar sem acção, sem capacidade de reagir, imobilizado».

É, pois, uma expressão que, sem ser muito utilizada, poderá ocorrer aqui ...

Pergunta:

É possível a separação do verbo e seus objetos?

Minha dúvida originou-se ao resolver o seguinte item de uma prova:

A questão dizia ser possível inserir sinal de dois-pontos depois de foram preservando a correção gramatical e a coerência textual.

O gabarito afirmava ser possível.

Eis o trecho:

«Os instrumentos utilizados foram a política de preços de energia, a política tecnológica e a política de incentivos e subsídios, além das medidas de restrição ao consumo através do estabelecimento de quotas às empresas do setor industrial.»

Isso se procede? Por quê?

Resposta:

Os dois-pontos indicam, por exemplo, o início de uma enumeração e, nesse caso, tornam-se importantes na coesão textual, uma vez que indicam ao leitor que vão ocorrer diversos elementos de valor idêntico na frase, estabelecendo o mesmo tipo de relação com a palavra que surge antes dos dois-pontos.

No exemplo que apresenta, os dois-pontos facilitariam a leitura, ao prepararem o leitor para a ocorrência de diversos itens de valor idêntico.

A forma de apresentar o texto pode ser a que ocorre no exemplo que dá, ou por itens, como exemplifico:

«Os instrumentos utilizados foram: 

  • a política de preços de energia;
  • a política tecnológica;
  • a política de incentivos e subsídios.

(…)»

Pergunta:

«A criança obcecada por se tornar uma mulher», ou «Obcecada com a ideia de se tornar uma mulher»? (Esta está OK, certo?)

Obrigada.

Resposta:

O adjectivo obcecado é, mais frequentemente, seguido da preposição por, mas pode ocorrer com a proposição com.

Em relação ao uso da preposição, ambas as frases são possíveis, mas a segunda parece-me mais feliz pela introdução do vocábulo ideia.

Curiosamente, em ambas as frases parece haver alguma ambiguidade, pois não é claro se tornar-se mulher é algo que se deseja ou que se receia. Pelo conhecimento que temos do mundo, podemos imaginar que a criança está tão ansiosa por crescer, que isso se tornou uma obsessão. Porém, poderá tratar-se de uma criança que, por qualquer motivo, receie crescer.

Por outro lado, assim, descontextualizadas, ambas as frases carecem do verbo, que poderia ser o verbo estar.

Bom trabalho!