Gonçalo Neves - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Gonçalo Neves
Gonçalo Neves
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Tradutor de espanhol, francês, inglês, italiano e latim; especialista em Interlinguística, com obra publicada (poesia, contos, estudos linguísticos) em três línguas planeadas (ido, esperanto, interlíngua) em várias revistas estrangeiras; foi professor de Espanhol (curso de tradução) e Português para Estrangeiros no Instituto Espanhol de Línguas; trabalhou como lexicógrafo na Texto Editores; licenciado em fitopatologia pela Universidade Técnica de Lisboa.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual a pronúncia correta do termo ex post facto?

Resposta:

A pronúncia correta desta usitada expressão latina é a seguinte: [eks post fakto]. Ou seja, a preposição ex pronuncia-se como a primeira sílaba do conhecido programa informático Excel. Quanto a post e facto, merece particular atenção o s de post, que se pronuncia como ç, e a vogal final de facto, que soa como um “verdadeiro” o (e não como u, ao contrário do que sucede em português).

Atente-se ainda que facto é a forma ablativa de factum («facto, feito, ação»), regida pela preposição ex, e que post («depois, mais tarde») funciona aqui como advérbio de tempo, pelo que não determina o caso do substantivo.

Uma lei ex post facto é aquela que é formulada posteriormente (post) aos factos sobre os quais incidem os seus efeitos, ou seja, trata-se de uma lei com efeitos retroativos.

Pergunta:

Sou assíduo leitor do boletim oficioso da Santa Sé, isto é, da Igreja Católica, mas não percebo a frase latina que se encontra na parte superior do dito jornal, que diz assim: «UNICUIQUE SUUM * NON PRAEVALEBUNT.» Poderiam explicar-me? Obrigado.

Resposta:

O periódico a que se refere o nosso consulente é L’Osservatore Romano, cujo primeiro número saiu do prelo em 1 de {#J|j}ulho de 1861 na Cidade Eterna. Inicialmente, o cabeçalho ostentava o subtítulo giornale politico morale, mas ainda antes de findar esse ano inaugural viria o mesmo a ser substituído pelos dizeres latinos que motivaram esta consulta.

Ao contrário do que supõe o nosso consulente, trata-se de duas expressões latinas independentes, que nada têm que ver uma com a outra. Por isso mesmo, trataremos de cada uma delas separadamente.

«Unicuĭque suum.»

O significado literal é «a cada um o (que é) seu». Uma tradução mais castiça poderia ser «o seu a seu dono». Trata-se de uma variante de «suum cuĭque», que aparece no célebre axioma do direito romano «suum cuĭque tribuĕre» («dar a cada um o que é seu»). Já Ulpiano, célebre jurista romano (c. 170-228) ensinava na sua Digesta (1.1.10) que «Iuris præcepta sunt hæc: honeste vivĕre altĕrum non lædĕre, suum cuĭque tribuĕre» («Os princípios do direito são os seguintes: viver honestamente, não prejudicar ninguém, dar a cada um o que é seu»). Estas regras fundamentais continuam válidas até hoje...

Desconheço o motivo que terá levado o referido jornal a preferir a variante «unicuĭque suum» à mais conhecida «suum cuĭque». Terá sido influência de Lutero? É que, na sua obra Dictata super psalterĭum (1513-1515), escreveu o monge agostinho alemão (3, 91): «Sic Domĭnus [...] reddit unicuĭque suum premĭum [præmĭum]» («Assim o Senhor dá a cada um a sua recompensa»).

«Non prævalēbunt.»

O significado literal é «não prevalecerão». Esta expressão vem direitinha do Novo...

Pergunta:

Qual o significado de «Flama Vitae»?

Muito obrigado.

Resposta:

O vocábulo "flama" não existe em latim. Trata-se certamente de uma gralha, em vez de flamma, que significa «chama». Escreve-se sempre com dois emes, grafia que, aliás, se refle{#c|}te nos correspondentes termos em francês (flamme) e italiano (fiamma), para não falar de inflammable («inflamável») em francês e inglês e de infiammabile em italiano.

O segundo termo é um genitivo e significa «da vida». A tradução literal da expressão é, pois, «chama da vida», embora se possa verter também por «chama vital». Trata-se de uma expressão encontradiça em latim medieval, a par de ignis vitalis («fogo vital»), lux vitae («luz da vida»), entre outras de semelhante teor. Não se pode bem interpretar como «alma», porque se considerava que os animais também estavam animados da tal flamma vitae, desse princípio vital, embora fossem destituídos daquilo a que vulgarmente se chama alma.

A expressão ganhou algum fôlego em tempos hodiernos, ao aparecer num esconjuro latino da famosa série televisiva norte-americana Buffy, the Vampire Slayer (1997-2003), criada por Joss Whedon (n. 1964) e conhecida em Portugal por Buffy, Caçadora de Vampiros (Buffy, a Caça-Vampiros, no Brasil). Em ambiente mais tranquilo e recatado, é também o nome de uma conhecida farmácia em Santarém, no Ribatejo, onde o nosso consulente certamente colheu inspiração para esta pergunta.

Pergunta:

Não sei a origem da expressão, mas a possível explicação de que viesse do latim «mano fico» não me satisfez, porque em latim, e quando se diz latim, sem mais, se entende latim clássico, essa construção seria impossível. Algo como manus ficae faz mais sentido.

Cumprimentos ao Ciberdúvidas.

Resposta:

Tem toda a razão o nosso consulente. A expressão "mano fico" não é latim, nem sequer macarrónico. Quando muito, seria italiano, pois, na língua de Dante, mano quer dizer «mão», e fico significa «figo».

Quanto a manus ficae, esta construção faria sentido em latim, se fosse possível atestar a forma fica, o que não se me afigura tarefa fácil, pois não acho esse vocábulo em nenhum dicionário nem na base de dados de autores latinos que perscrutei. No entanto, trata-se de forma plausível, ou mesmo expectável, pelo menos no chamado latim vulgar, dada a ocorrência do plebeísmo fica («vulva») em italiano. Seja como for, «figo» em latim era ficus, que fazia no genitivo singular fici pela segunda declinação, ou ficus pela quarta, e assim «mão de figo», se tivesse algum sentido, seria manus fici ou manus ficus na língua de Cícero.

Estou em crer que a expressão "mano fico", citada pelo consulente André Morais em resposta anterior, é corruptela do italiano mano in fica («mão em figa»), nome que o arqueólogo italiano Andrea de Jorio (1769-1851) deu ao milenar gesto na sua famosa obra La Mimica degli Antichi Investigata nel Gestire Napoletano («A mímica dos antigos investigada através do gesticular napolitano»), publicada em 1832.

A propósito, em resposta anterior foi citado um trecho da obra A Casa da Mãe Joana 2, da ...

Pergunta:

Na resposta a uma dúvida de 23/03/2009 a respeito da pronúncia de Escherichia coli, foi dito que, nos nomes científicos, a sequência ch deve ser lida como /k/. Foi também dito que a primeira sílaba do nome do género da dita bactéria se deve ler como em Estoril.

Ora, gostaria de saber a justificação usada para estas informações, que me parecem inconsistentes:

1. Se, por um lado, a sequência , em nomes neolatinos, é lida como /k/, a verdade é que os nomes científicos não são obrigatoriamente latinizados, tendo apenas de ser romanizados. Por este motivo, parece fazer pouco sentido que se pronunciem como sendo palavras latinas.

2. Caso seja aceite a pronúncia latina para nomes científicos, não faz sentido pronunciar a primeira letra do nome Escherichia como /ɨ/, vogal inexistente tanto no latim clássico como no vulgar, no eclesiástico e mesmo em novo latim (o latim como falado pela comunidade científica até cerca de 1900).

3. Mesmo que se considerem os nomes científicos como neolatinos (nunca como latinos, devido à existência de sequências gráficas que estão presentes nos mesmos sem existirem em latim), há que ter em consideração que não existe uma forma única de pronunciar nomes neolatinos: nos tempos em que o novo latim era realmente utilizado pela comunidade científica, falantes de diferentes nacionalidades usavam diferentes normas orais, não havendo uma norma única como no caso do latim clássico (tendo em conta, contudo, que essas diferentes normas eram regulares dentro de cada país).

4. A pronúncia recomendada em inglês é /ˌɛʃɪˈrɪkiə ˈkoʊlaɪ/ (partindo do princípio que a Wikipedia anglófona é de confiança...

Resposta:

O dígrafo latino ch é, de facto, lido como /k/, tanto na pronúncia restaurada, actualmente em vigor em todos os nossos estabelecimentos de ensino, como na chamada pronúncia tradicional portuguesa e também na pronúncia romana ou eclesiástica, ainda utilizada pela Igreja em Portugal, nas raras ocasiões em que a língua de Cícero se faz ouvir no decorrer da liturgia. Por maioria de razões, os nomes científicos não escapam a esta regra, ou não deveriam escapar. No entanto, estes nomes, por vezes, obedecem a normas peculiares, que consuetudinariamente se vão constituindo e impondo na comunidade científica...

O caso presente talvez se entenda melhor se recorrermos à história do vocábulo cuja pronúncia gera a perplexidade do nosso consulente. O pediatra e bacteriologista austro-alemão Theodor Escherich (1857-1911) foi o primeiro cientista a estudar a flora intestinal. Entre as várias bactérias que isolou, cultivou, descreveu e baptizou, destaca-se o Bacterium coli commune («bactéria vulgar do cólon»), que o próprio Escherich apresentou à Sociedade de Morfologia e Fisiologia de Munique em 24 de Julho de 1885. Dez anos mais tarde, o botânico alemão Walter Migula (1863-1938) propôs o nome Escherichia coli para designar este microrganismo, em homenagem ao seu descobridor. Em 1919, esta denominação foi retomada num célebre trabalho conjunto do bacteriologista italiano Aldo Castellani (1877-1971) e do patologista britânico Albert John Chalmers (1870-1920). Devido ao prestígio desta obra e dos seus autores, foi o nome genérico Escherichia que vingou, acabando por gerar inúmeros engulhos a quem tentasse perceber como se deve pronunciar este termo tão estrambótico...

Como é fácil de entender, o nome Escherichia pouco ou nada tem que ver com latim. Trata se de um neologismo formado a partir do antropónimo...