Gonçalo Neves - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Gonçalo Neves
Gonçalo Neves
14K

Tradutor de espanhol, francês, inglês, italiano e latim; especialista em Interlinguística, com obra publicada (poesia, contos, estudos linguísticos) em três línguas planeadas (ido, esperanto, interlíngua) em várias revistas estrangeiras; foi professor de Espanhol (curso de tradução) e Português para Estrangeiros no Instituto Espanhol de Línguas; trabalhou como lexicógrafo na Texto Editores; licenciado em fitopatologia pela Universidade Técnica de Lisboa.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Usa-se "pró-tempore" (aportuguesado) ou "pro-tempore", sem acento, conservando a palavra latina. Neste caso, em relatório científico, deve-se usar a palavra em itálico?

Obrigada.

Resposta:

Nem uma coisa nem outra...

A expressão latina pro tempore (sem hífen!) tinha nos clássicos a acepção de «consoante as circunstâncias». Para expressar esta mesma acepção, serviam-se igualmente da expressão ad tempus, a qual, no entanto, também significava «provisoriamente». Por exemplo, um «dux ad tempus lectus» era um governador eleito provisoriamente, ou seja, o que chamaríamos hoje um governador interino. É natural que, com o tempo, a expressão pro tempore se confundisse com a anterior e passasse a designar igualmente a interinidade de um cargo ou de um funcionário.

Assim se justifica que, actualmente, na literatura anglo-saxónica e não só, se fale, por exemplo, em presidente pro tempore e presidência pro tempore. Temos duas opções: ou mantemos a expressão latina (sem hífen!), ou apresentamos a sua lídima tradução em vernáculo, o que reputo preferível: «presidente interino» e «presidência interina». Já o aportuguesamento “pró-témpore” ou “pró-têmpore” me parece desnecessário ou mesmo descabido, isto para não falar de “pró-tempore”, que nem sequer respeita a prosódia latina. Se optarmos por manter a expressão latina, devemos obviamente escrevê-la em itálico, quer se trate ou não de texto científico.

Pergunta:

Desde já os meus agradecimentos pelo vosso trabalho em prol da língua portuguesa. Sou uma utilizadora frequente do Ciberdúvidas e por isso tomo a liberdade de vos pedir uma ajuda.

Num livro que estou a rever, encontrei a seguinte frase «[Bernard Shaw] Não era capaz de descobrir o que podia haver de piada numa adega ou num antro de contrabandistas, mas em compensação exigia uma leveza, nalgum sentido celestial e literal, de sub divo».

Não consigo saber o que significa «sub divo». Parece-me uma expressão latina e pensei que estivesse relacionada com os tipos de vozes do cantigo lírico, mas não encontro prova disso. Poderão ajudar-me?

Desde já agradeço a atenção e os ensinamentos constantes.

Resposta:

A expressão sub divo é, de facto, latina, mas nada tem que ver com canto lírico. A preposição sub tem o mesmo significado da nossa sob, que dela deriva directamente. Quanto a divo, trata-se da forma ablativa singular de divum, «céu». A expressão sub divo (que também admite a variante sub dio) tem portanto o significado literal de «sob o céu», mas é mais correcto traduzi-la por «ao ar livre», «a céu aberto» ou até «ao relento».

A frase citada pela consulente foi extraída do décimo capítulo da autobiografia de Gilbert Keith Chesterton (1874-1936), um dos mais influentes e prolíficos escritores ingleses do passado século, que criou a figura do famoso detective Padre Brown. A frase original reza assim: «He [Bernard Shaw] would not see the fun of cellars or smugglers’ caves; but require a levity in some sense celestial in the literal sense of being sub divo.» Em vulgar, poderíamos escrever que «[Bernard Shaw] não achava graça a caves ou a cavernas de contrabandistas, mas não dispensava uma leveza, em certo sentido, celestial, no sentido literal de quem está sub divo».

Salvo melhor análise, Chesterton joga aqui com o significado literal de sub divo («sob o céu») reforçando com o mesmo a ideia de «leveza celestial». Também é curiosa a forma como contrasta duas das acepções de sense («ponto de vista» e «significado»), o que pode e deve ser mantido na tradução. Por último, refira-se a profusão de sibilantes (some sense celestial; sense of being sub divo), que pretende transmitir provavelmente uma sensação de fluxo, movimento, liberdade, espaço, ou seja, de atributos importantes para quem preze a vida ao ar livre, longe do sufoco de caves e cavernas. Quão repleta pode sair uma pequena frase da pena de um artist...

Pergunta:

Há já muito tempo que tenciono obter uma explicação para o significado da palavra réquiem.

Resposta:

Um réquiem é uma composição musical sobre o texto litúrgico da missa dos mortos. Este vocábulo, que nos entrou por via erudita, vem directamente do latim requiem, acusativo singular do substantivo requĭes, requiētis, “descanso, repouso”. Trata-se da primeira palavra do intróito da missa dos mortos Requiem æternam dona eis, Domine: «Senhor, concede-lhes o eterno descanso.»

À mesma família de réquiem pertencem vários vocábulos na nossa língua, uns vulgares, outros mais eruditos, embora todos fora da área musical: quieto, quietude, quietude, quiescência, etc. 

Pergunta:

Haverá algum conhecimento da vossa parte sobre o significado do termo latino depressio hiemalis?

Obrigado.

Resposta:

Traduzida à letra, depressio hiemalis quer dizer «depressão invernal» ou «depressão de Inverno». Trata-se de uma síndrome depressiva associada à falta de luminosidade natural, frequente nos meses de Setembro a Abril, sobretudo em Dezembro, Janeiro e Fevereiro.

Esta doença tem grande incidência na Finlândia, donde nos escreve o nosso consulente, onde é conhecida por kaamosmasennus. Na literatura médica, é geralmente designada pela sigla SAD, correspondente à expressão inglesa seasonal affective disorder (distúrbio afectivo sazonal).

Pergunta:

Gostaria que me traduzissem a seguinte divisa latina que reflecte o crescimento territorial de uma família germânica: «Parent bella alii: tu, Portugale felix, nube.»

Muito grato.

Resposta:

A frase latina «Parent bella alii: tu, Portugale felix, nube» significa literalmente o seguinte: «Os outros que preparem as guerras: tu, Portugal feliz, casa-te.»

O que espanta nesta frase é o termo Portugale, utilizado para designar o nosso país. Em latim, costuma usar-se o termo clássico Lusitania (embora este correspondesse a uma região cujas fronteiras não coincidiam exactamente com as do nosso território actual) ou o vocábulo pós-clássico Portugalia, que não é mais do que uma latinização tardia do topónimo Portugal. Por isso mesmo, seria de esperar ver, nesta frase, a invocação Portugalia felix, em vez de Portugale felix.