Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2. Com pós-graduação em Edição de Texto, trabalha na área da revisão de texto. Exerce funções como leitora no ISCTE.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Deverá ser «cumprimentos do Brasil» ou «cumprimentos desde o Brasil»?

Como é que se deve empregar a preposição desde?

Muitíssimo obrigado!

Resposta:

«Cumprimentos do Brasil» é a expressão correta, e significa «mando cumprimentos do local onde me encontro, que é o Brasil». Atendendo ao sentido genérico da preposição desde, que é o de «limite a partir do qual se percorre uma extensão», não parece que o uso neste contexto se justifique.

Com efeito, a preposição desde marca geralmente «movimento ou extensão com relação a um ponto determinado no espaço, a começar de (ex.: "veio a pé desde casa"); movimento ou extensão a partir de um momento determinado, a partir de, a datar de, já, já em (ex.: "desde cedo revelou interesse"); ordem gradativa, sempre em correlação com as preposições a ou até (ex.: "estavam lá, desde ministros aos mais humildes funcionários")» (Dicionário Houaiss). Ora, sabendo que desde se faz frequentemente acompanhar das preposições até e a estejam elas implícitas ou explícitas  (ex.: «Estou à espera de um telefonema desde ontem [até hoje]»), considera-se inadequado o seu uso  como acontece na expressão apresentada.

Na verdade, se se pretende marcar apenas afastamento, sem alusão ao limite final de um percurso (cf. Textos Relacionados), emprega-se a preposição de, como no caso do envio, transmissão ou difusão de alguma coisa; exemplos: «falou do escritório» (= a partir do escritório), «trabalha de casa» (= a partir de casa), «o programa foi transmitido de Lisboa» (= a partir de Lisboa). Sendo assim, em relação ao agradecimento em questão, a forma correta corresponde a «cumprimentos do Brasil», expressão que subentende «cumprimentos enviados do Brasil».

Acrescente-se que o uso de desde em lugar de de na situação descrita não é desconhecida em textos literários portugueses, como observou 

Glossário digital de 329 termos e expressões antigas

O que é um amanhador? E o bandaço? E escuchar  um carapau?  E uma pessoa escorva? E uma ouriçada quer dizer o quê? Finalmente: levar uma tuna que sentido tem na na vox populi dos sineenses? O que querem dizer estes e outros mais de 300 termos e expressões antigas das gentes do concelho de Sines – um léxico com influência de muitas proveniências ( que não só locais) e conforme a sua relação com a atividade agrícola (terra)  piscatória (mar) – encontra-se acessível num glossário organizado pelArquivo e Biblioteca Municipal de Sines e a Universidade de Évora. Este trabalho, onde se casam as expressões suportadas por imagens ilustrativas,  encontra-se disponível via Internet e é de consulta gratuita. Aqui.

Pergunta:

Nesta frase  de Camilo Castelo Branco [«Sabes onde vai bater o meu dinheiro?»], figura onde, mas não deveria em vez de onde figurar aonde: «Se ela assim continuar e ficar solteira, sabes onde vai bater o meu dinheiro e mais o teu?»

Cumprimentos

Resposta:

O advérbio aonde, que surge da contração entre a preposição a e o advérbio onde, tem atestação nos dicionários com o seguinte uso: «Ao lugar que (em que direção); para o lugar que (para que direção); para qual lugar». Por outro lado, do advérbio onde ocorre com valor locativo, sem movimento, marcando o lugar onde se está. Posto isto, a frase de Camilo Castelo Branco não está exatamente incorreta, tudo depende da interpretação do significado da mesma. Veja-se:

(1) «Se ela assim continuar e ficar solteira, sabes onde vai bater o meu dinheiro e mais o teu?»

(2) «Se ela assim continuar e ficar solteira, sabes aonde vai bater o meu dinheiro e mais o teu?»

Em (1) podemos assumir que a pergunta é «em que lugar baterá o nosso dinheiro?»; já em (2) podemos interpretar a pergunta como «o dinheiro vai a determinado lugar e bate aí». 

No entanto, e apesar da explicação acima dada, é importante citar a Gramática de Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, p. 2102): «Quando o verbo da oração relativa é "ir", embora o valor locativo seja direcional, pode também usar-se o pronome relativo não preposicionado: cf. a cidade onde eles foram é muito longe da minha.» Ora, esta passagem confirma que, com o verbo ir da oração relativa, podemos optar pelo advérbio aonde ou pelo advérbio onde com um valor locativo dinâmico sem que se incorra em erro. Aceitando que esta desc...

Pergunta:

É correcto usar «Muitas das vezes não dão a oportunidade à pessoa de ganhar experiência» ou «muitas vezes...»?

Resposta:

Usamos a expressão «muitas das vezes» quando há uma quantidade predefinida de vezes, que pode estar ou não subentendida, em que determinada coisa ocorreu (ex.: «Muitas das vezes em que te telefonei, não atendeste»). Por outro lado, usamos a expressão «muitas vezes», sinónima de frequentemente, repetidamente, sistematicamenteetc., para indicar que algo se verificou mais que uma vez, de forma recorrente.

Ora, na oração apresentada aceitam-se as duas locuções, embora os contextos das frases em que elas se inserem sejam diferentes:

(1) «[Frequentemente somos admitidos em estágios, mas] muitas das vezes não dão oportunidade à pessoa de ganhar experiência.»

(2)  «Muitas vezes não dão a oportunidade à pessoa de ganhar experiência»

Em (1) percebe-se que, algumas/muitas das vezes em que uma pessoa é admitida em um estágio, não lhe é dada a oportunidade de ganhar a experiência suposta, apesar de não se excluir que nas restantes vezes acontece o oposto. Em (2) o enunciado refere que frequentemente ocorre não se dar oportunidade de se ganhar experiência. 

Pergunta:

Como se diz: «dar entrada em» ou «dar entrada a»?

Exemplos: «A Joana deu entrada na cidadania portuguesa» e «A Joana deu entrada à cidadania portuguesa».

 

Resposta:

A primeira questão colocada permite duas leituras. O consulente apresenta duas orações – «A Joana deu entrada na cidadania portuguesa» e «A Joana deu entrada à cidadania portuguesa» –, que podem ser interpretadas como «A Joana obteve a cidadania portuguesa». Se esta for a leitura pretendida, então afigura-se melhor o uso da preposição em, ou seja, «A Joana deu entrada na cidadania portuguesa», no sentido de «entrou no conjunto dos cidadãos de Portugal». Aqui, a locução dar entrada tem o sentido literal de entrar e, por isso, deve fazer-se acompanhar da preposição em. 

No entanto, podemos interpretar as orações de outra maneira. Se partirmos do princípio que as frases apresentadas são construções elíticas, em que se subentendem outras palavras, deveríamos ler:

(1) «A Joana deu entrada no processo de obtenção da cidadania portuguesa»;

(2) «A Joana deu entrada ao processo de obtenção da cidadania portuguesa».

Neste caso, ambas as orações estão corretas, ainda que tenham significados diferentes. Em (1) afirmamos que a Joana iniciou o (seu) processo para a obtenção da cidadania; em (2) a Joana registou o processo para o desencadear, para se iniciarem os trâmites administrativos.