DÚVIDAS

A vírgula e as expressões religiosas «ave, Maria» e «salve, Rainha»

Na conhecida oração ave-maria, uma saudação à Virgem Maria, não deveria o vocativo Maria estar separado por vírgula («Ave, Maria, cheia de graça! O Senhor é convosco…», em vez de «Ave Maria, cheia de graça…», como aparece em todos os textos?

O mesmo se poderia perguntar em relação àquela outra oração católica salve-rainha: «Salve, Rainha, Mãe de misericórdia…», e não, como vemos sempre, «Salve Rainha, Mãe de misericórdia…».

Sabendo nós que os imperativos latinos ave e salve se tornaram interjeições de saudação em português («Viva, Maria!», «Olá, Maria!»), poderemos considerar que a falta de vírgula nos textos das orações ave-maria e salve-rainha se enquadra no chamado «consagrado pelo uso»?

Como neste interessante artigo [de Gonçalo Neves], do Ciberdúvidas se refere, «é frequentemente citada (e até se encontra numa aventura de Astérix...) a frase com que os gladiadores, já na arena, saudavam o imperador antes de entrarem em combate: "Ave, Cæsar, morituri te salutant." É curioso notar que o tradutor Paulo Rónai se serviu de salve para traduzir este ave: "Salve, imperador, os que vão morrer saúdam-te..."»

É interessante notar que o dicionário em linha Infopédia regista o seguinte, devidamente virgulado: «do latim eclesiástico Ave, Maria, «ave, Maria!»”

Muito obrigado.

Resposta

Em nome do Ciberdúvidas, agradece-se a pergunta, que, no fundo, já inclui a própria resposta.

Na verdade, é de esperar, como observa o consulente, que uma vírgula figure entre ave ou salve e o nome próprio Maria, tal como acontece com outras sequências formadas por uma saudação e um vocativo: «olá, Maria»; «bom dia, César». Sendo assim, «ave, Maria» e «salve, Rainha» estão corretos do ponto de vista dos preceitos de aplicação da vírgula, enquanto as formas «ave Maria» e «salve Rainha» estão incorretas.

No entanto, e como também bem assinala o consulente, geralmente nestas situações não se escreve a vírgula, numa prática que configura uma exceção que se enraizou na escrita de tais expressões. Daqui não decorre que se considere este uso tão ou mais correto; nota-se, aliás, que há oscilações no registo da vírgula associada à interjeição ave, ora ocorrendo ora não, como acontece num documento digital associado à liturgia das horas e incluído nas páginas do Secretariado Nacional da Liturgia (SNL):

(1) «Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco.» (Dezembro, Próprio dos Santos, SNL)

(2) «Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre. Aleluia.» (idem, ibidem)

Contudo, não se pense que neste caso a vírgula é facultativa, porque a consulta de uma obra religiosa impressa, o Missal Quotidiano Dominical e Ferial (Lisboa, Paulus Editora, 2012, p. 2625), apresenta a vírgula devidamente colocada entre a interjeição e o nome Maria:

(3) «Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois entre as mulheres.»

E, na mesma fonte, atesta-se a vírgula a separar a interjeição salve e um vocativo:

(4) «Salve, Santa Mãe, que destes à luz o Rei do céu e da terra.» (idem, p. 2647)

Conclui-se, portanto, que a vírgula continua a justificar-se nas situações em apreço. Convém recordar também que os nomes que as identificam são ave-maria e salve-rainha, com hífen (cf. padre-nosso ou pai-nosso), como bem escreve o consulente.

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