DÚVIDAS

Casos de próclise e ênclise

Choram como se o dia fosse noite

E só tu cuidas delas

Poisa a pomba na cruz

E só tu deixas-te ir

Neste fragmento de um poema, temos no último verso «e só tu deixas-te ir» em vez de (no meu entender e como deveria ser) «e só tu te deixas ir».

Este é um exemplo de entre muitos os que se ouvem no dia-a-dia. Se a frase fosse «e tu deixas-te ir», estaria correcta.

Esta forma, colocando o (verbo)-te... em vez do te (verbo)..., usada agora por estudantes, professores, jornalistas, políticos, etc., é muito comum nos nossos dias tanto na escrita como na oralidade e parece-me errada, mas não encontro bases para sustentar esta minha convicção.

Podem, por favor, esclarecer-me e, no caso de eu ter razão, dar-me bases gramaticais para que eu a defenda?

Resposta

Em primeiro lugar, é de referir a particularidade da licença poética de todo o texto literário que o liberta da norma linguística, valorizando os efeitos sugeridos, a melodia, o ritmo, as sensações. Não nos podemos esquecer de que o que confere literariedade a um texto é a carga simbólica que ele transporta, a polissemia que é conseguida precisamente pela arte da escrita. Assim, a linguagem poética não está sujeita ao espartilho das regras e da norma linguística que qualquer outro tipo de texto deve respeitar. Por isso, o que seria um caso de incorreção num outro tipo de texto — como o da frase «e só tu deixas-te ir» — não pode ser encarado do mesmo modo por se tratar de um poema.

De facto, tal como o consulente sugere, esse seria um caso de próclise (colocação antes do verbo) pronominal em qualquer discurso comum, porque «o verbo vem antecedido de um advérbio (bem, mal, ainda, , sempre, , talvez, etc.) e não há pausa que os separe (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 313).

 

Relativamente à segunda questão apresentada:

Embora usemos com frequência os pronomes átonos, arbitrariamente e, na maioria das vezes, inconscientemente, a sua colocação é considerada «um dos pontos mais complicados da sintaxe portuguesa» (Pilar Vásquez Cuesta e Maria Albertina Mendes da Luz, Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Edições 70, 1971, p. 493), pois, embora a sua posição lógica seja a ênclise (depois do verbo) — a posição normal do objeto direto ou indireto, as funções dos pronomes átonos —, «há casos em que, na língua culta, se evita ou se pode evitar essa colocação» (Cunha e Cintra, op. cit., p. 310), optando-se pela próclise.

Assim, apesar de alguns gramáticos e linguistas apresentarem algumas regras para as situações de próclise do pronome, pela forma como as colocam, depreende-se que estão conscientes de que são casos em que não há «exactidão absoluta» (Gramática da Língua Portuguesa, op. cit.), evitando o risco da assertividade e usando cautelosamente expressões do tipo «é […] preferida a próclise» (Cunha e Cintra, op. cit., p. 311) ou «a língua portuguesa tende à próclise pronominal» (idem, p. 313). De qualquer modo, há vários casos previstos nas regras gerais em que é preferida a próclise.

Como a colocação dos pronomes átonos tem sido objeto de muitas respostas, aconselha-se a consulta das respostas em linha sobre o tema, de que são exemplo as seguintes: A colocação dos pronomes átonos, A colocação dos pronomes e das regras e Ainda a próclise, a mesóclise e a ênclise.

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