DÚVIDAS

Verbos impessoais vs. verbos unipessoais

Carlos Góis [1881-1934], no seu livro Sintaxe de Regência, estabelece distinção entre os verbos impessoais e os unipessoais. Transcrevo para aqui o que ele refere:

«1- Não se confundam Verbos Impessoais com Verbos Unipessoais. A lamentável confusão (em que não poucas gramáticas têm incorrido) provém de que:

– tanto uns como outros só se conjugam em uma pessoa – A TERCEIRA (DO SINGULAR, OU DO PLURAL), donde ser lícito concluir: 

– os verbos impessoais são sempre unipessoais.

Os unipessoais, porém, não são impessoais, porque o seu sujeito não é "indeterminado" (como sucede aos impessoais): é sempre determinado e expresso na frase, constituído:

a) ora por um infinitivo, ex.: "Convém estudar" – "Releva dizer" – "Sucedeu-lhe sair" – "Aconteceu-me falar";

b) ora por uma oração (cláusula substantiva subjetiva): "Convém que estudes" – "Urge que saias".»

Por último, transcrevo ainda o que ele menciona no item 4:

«4- Há uma tendência moderna (em que é manifesta a nefasta influência da sintaxe francesa) dos gramáticos em equiparar os verbos unipessoais aos impessoais, partindo do princípio de que:

Quer o infinito, quer a oração (únicos sujeitos que pode ter o verbo unipessoal) "não constituem propriamente pessoas gramaticais).

Ora, sendo Pessoas Gramaticais – as diversas maneiras de ser do sujeito, segundo a definição clássica – é certo que os casos de sujeito infinitivo e de sujeito oracional se enquadram na definição. Enumerando as diversas "relações", que podem funcionar como sujeito – são acordes as gramáticas (entre as quais sobre-eleva a de Mason) em arrolar o infinitivo e a oração. Ora, se equipararmos os verbos unipessoais aos impessoais, iremos cair no absurdo de considerar o infinito e a oração como seu objeto direto, o que poderá estar perfeitamente conforme ao génio da língua francesa, mas não no está em relação ao génio da portuguesa. É inacreditável que gramáticos do porte de Epifânio Dias [18841-1916] e João Ribeiro [1860-1934] pretendam inaugurar semelhante teoria, partindo de uma acepção muito restrita, em que estimam o acidente de pessoa, parecendo que só admitem como pessoa gramatical o "pronome" e o "substantivo" - esquecidos de que o infinito é um substantivo verbal, e de que orações há substantivadas, equivalentes do substantivo (segundo o testifica Mason), e de que o pronome, quando indefinido, é ainda mais vago e impreciso em sua enunciação pessoal que o infinito e a oração. Ouça-se o que aduzem a respeito: Epifânio Dias, em sua Sintaxe Histórica: "Em sentido lato também são impessoais as orações cujo predicado se refere a uma oração que faz as as vezes de sujeito (v.g. importa que isto se faça depressa), por isso que uma oração não é propriamente uma pessoa gramatical."»

Pois bem, tendo procurado em várias gramáticas portuguesas, não encontrei nenhuma distinção feita pelos autores entre os verbos impessoais e os unipessoais e por isso mesmo gostaria de saber se a diferença que Carlos Góis estabelece se encontra noutros autores de gramáticas portuguesas ou se se trata de uma teoria sua. Em havendo, gostava ainda de que me informassem o autor ou os autores que perspectiva(m) esses verbos da mesma maneira que o sr. Góis.

Trabalho maravilhoso o vosso.

Desde já muito obrigado!

 

P. S. : Ainda sobre a minha pergunta, desejava saber se a ação dos verbos unipessoais se atribui só a vozes de animais, se se trata unicamente de vozes de animais, por exemplo, rugir (leão), bacorejar (leitão), tinir (milheira) [...] Ou se o que sr. Carlos Góis aduz é um corolário seu, uma formulação da sua lavra, quando diz que os verbos impessoais são sempre unipessoais e que os unipessoais, no entanto, não são impessoais, porque o seu sujeito não é indeterminado, como sucede aos impessoais, sendo, portanto, sempre determinado e expresso na oração, constituído, ora por um infinitivo («Convém estudar»), ora por uma oração («Aconteceu-me faltar»), ou, se essa visão existe também em Portugal, na tradição gramatical portuguesa. [...]

 

Resposta

A questão colocada convoca duas abordagens distintas da classe do verbo: uma, de âmbito sintático-semântico, relacionada com a constituição de uma tipologia verbal definida a partir dos argumentos selecionados por parte do verbo, e uma outra, de âmbito morfológico, relacionada com as características flexionais dos verbos.

Segundo a primeira perspetiva, os verbos são suscetíveis de ser organizados de acordo com as seguintes características:

(i) verbos que não selecionam nenhum argumento;

(ii) verbos que apenas selecionam um argumento, normalmente sujeito;

(iii) verbos que selecionam dois argumentos, um sujeito e um complemento (direto, indireto ou oblíquo);

(iv) verbos que selecionam três argumentos, um sujeito e uma combinação de dois dos vários complementos possíveis do verbo.1

Os verbos impessoais pertencem ao primeiro grupo, porque não selecionam sujeito nem qualquer complemento. Em português, este grupo é formado por um número restrito de elementos, distribuídos pelos verbos meteorológicos (chover, p.e.), de mudança de parte do dia (amanhecer, p.e.), pelo verbo haver com sentido existencial, pelos verbos haver e fazer quando referem duração e pelos verbos bastar, chegar e tratar-se quando regem a preposição de2.

A segunda perspetiva possível descreve e classifica os verbos de acordo com as suas características morfológicas. Neste domínio, um dos parâmetros de análise está relacionado com as possibilidades flexionais do verbo, considerando tempo, modo e aspeto, por um lado, e em género e número, por outro. Este enfoque permite também a criação de uma tipologia verbal organizada segundo as propriedades flexionais do verbo:

(i) verbos regulares;

(ii) verbos irregulares;

(iii) verbos defetivos.

Os verbos defetivos caracterizam-se por não terem todas as propriedades flexionais de um verbo comum, ou seja, por terem limitações a nível da flexão em tempo-modo e em pessoa-número. A defetividade verbal pode ficar a dever-se a dois tipos de razões3:

(i) razões de ordem fonética, que se aplicam a verbos que só se conjugam nas formas que não são acentuadas numa sílaba do radical, como abolir, demolir, falir, que não flexionam, por exemplo, na 1.ª pessoa do singular;

(ii) razões de ordem semântica, que se aplicam aos verbos das chamadas vozes de animais, verbos onomatopaicos ou aos verbos de fenómenos meteorológicos que bloqueiam a flexão em algumas pessoas. 

É entre estes últimos que encontramos duas subclasses: os verbos impessoais, que só flexionam na 3.ª pessoa do singular, e os verbos unipessoais, que flexionam apenas na 3.ª pessoa do singular ou do plural4. Note-se, relativamente a estes últimos, que não se resumem apenas às vozes de animais e aos verbos onomatopaicos. Veja-se, por exemplo, o caso do verbo aprazer (aqui).

Fica assim claro que as classificações dos verbos dependem da perspetiva adotada pelos gramáticos. No entanto, a classificação dos verbos como unipessoais não é, de facto, produtiva nas gramáticas descritivas mais recentes, o que se compreende até pelo facto de as limitações dos verbos pertencentes a este grupo não serem morfológicas. De facto, uma frase como «Eu mio.» é perfeitamente possível, pois o verbo detém as possibilidades flexionais de um verbo regular. O interesse de usos desta natureza estará no plano pragmático ou literário.

Não obstante, em gramáticas de natureza escolar, destinadas ao ensino não universitário, poderemos encontrar a classificação de verbo defetivo impessoal e unipessoal5, o que se justifica, julgamos nós, por razões de sistematização de conteúdos relacionados com o verbo. Neste plano de estudo, poderá não se justificar uma distinção tão fina como aquela a que procedemos acima, porque se tem em vista uma descrição holística da classe do verbo.

Em resposta às novas questões do consulente, consideramos que, no âmbito da descrição gramatical, afirmar que todos os verbos impessoais são unipessoais é apenas uma forma de criar uma nova relação hierárquica dentro da classe. Julgo que será mais claro considerar que os verbos unipessoais têm a possibilidade de flexionar em número, singular ou plural, ao passo que os impessoais não têm essa possibilidade. Por outro lado, afirmar que os verbos unipessoais nunca são impessoais é apenas uma curiosidade que junta critérios morfológicos e sintático-semânticos.

Finalmente, diga-se que nas construções «Convém estudar» ou «Aconteceu-me faltar» não estamos perante verbos impessoais, uma vez que os constituintes «estudar» e «faltar» desempenham a função de sujeito nas respetivas frases.

Disponha Sempre! 

1. Para um maior aprofundamento do quadro de regências dos verbos, cf. Raposo et al., Gramática do português. Fundação Calouste Gulbenkian, sobretudo pp. 1188-1192.

2. Lista apresentada em ibidem, p. 1193.

3. Segundo proposta de Alina Villalva em Mateus et al., Gramática da língua portuguesa. Caminho, pp. 937-938.

4. Esta classificação é apresentada por Cunha e Cintra, que, contudo, não apresentam os verbos impessoais e unipessoais como pertencentes aos verbos defetivos (que são associados ao grupo de verbos defetivos por razões de ordem fonética) (cf. Nova Gramática do Português Contemporâneo, pp. 442-446). Também Evanildo Bechara classifica os verbos em impessoais e unipessoais, considerando, todavia, que os impessoais não são defetivos: «são indevidamente considerados defectivos os verbos impessoais (pois não se referem a sujeito), que só são  empregados na terceira pess. sing.: Chove muito. Relampeja. Quando em sentido figurado, os verbos desta observação, como os da anterior, conjugam-se em quaisquer pessoas: Chovam as bênçãos do céu» (Moderna Gramática Portuguesa, Nova Fronteira, p. 189.)

5. cf., por exemplo, Nascimento e Lopes, Domínios, Plátano Editora, pp. 104-105.

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