Crónica do autor publicada no semanário Expresso de 16/04/2016, a propósito da iniciativa do Bloco de Esquerda para a mudança da denominação do cartão do cidadão, por considerá-la «linguagem sexista».
[Sobre esta mesma querela, cf. "O sexo das palavras e "Dobrar a língua"]
O Bloco de Esquerda quer mudar o nome do cartão de cidadão para cartão de cidadania por considerar que o nome atual do documento «não respeita a identidade de género de mais de metade da população portuguesa». Fiquei de boca (ou de boco, tendo em conta a minha identidade de género, ou o meu identidade de género) aberta (ou aberto). Quando será que perceberão que, ao contrário do que Dilma pretende, o combate à desigualdade não se faz destruindo a gramática? Ou seja, que Dilma não é presidenta, como nunca foi estudanta, nem nunca ficou contenta? Aliás, do mesmo modo que, por muita coragem (raios, muito coragem) que eu tenha, nunca terei o ousadio suficiente para voar como os águios! Aliás, tenho engordado, mas ainda não pareço um baleio.
Mas nesta o Bloco (ou a Bloca) não me apanha! Cidadania, caros e caras, é uma palavra feminina. Não há cidadanio! Arranjem outro nome que respeite a identidade de género.
Um pouco mais a sério, uma das maneiras de destruir uma causa importante é torná-la ridícula. Ora, certas pessoas têm esse condão. Se a igualdade entre géneros (eu prefiro a palavra sexos) é uma marca civilizacional indiscutível (no sentido de haver direitos iguais, salários iguais, regalias iguais), a ideia de que essa igualdade passa por estas nuances gramaticais pode ser mortal. É tão ridículo como pretender que, em nome da igualdade dos povos (outro conceito importante), nascêssemos todos com a mesma cara e a mesma altura.
Miguel Esteves Cardoso escreveu há tempos que dizer, como se diz agora, «portuguesas e portugueses não é apenas um erro e um pleonasmo: é uma estupidez, uma piroseira e uma redundância que fede a um machismo ignorante e desconfortavelmente satisfeitinho. Somos todos portugueses e basta!». Concordo inteiramente. Há, na gramática portuguesa (que não tem neutro, como o alemão ou o inglês), substantivos uniformes. Uma criança não é uma menina, uma testemunha não é uma mulher, e uma estupidez pode ser feita por um homem.
Cf. Governo substitui “direitos do Homem” por “direitos humanos”
+ A linguagem inclusiva, esse "perigo público" + La gramática no tiene sexo, no es incluyente ni excluyente + Feminino dos substantivos e dos adjectivos
In semanário Expresso de 16 de abril de 2016.