«(...) Ao pretender privilegiar, por razões de estratégia político-económica pós-colonial, o diálogo cultural sul-sul, em detrimento e não em convergência com o diálogo norte-sul, o Brasil está a dar uma espécie de grito do Ipiranga fora de tempo face à velha Europa. Prescindir do contacto estreito com uma literatura que só prestigia a língua em que o Brasil fala e com uma cultura europeia e atlântica à qual a identidade brasileira estará para sempre indelevelmente ligada a montante, como a portuguesa estará relativamente à brasileira, a jusante, em nada fortalece o Brasil, a sua identidade e o seu poder de influência. (...)»
[Artigo da ex-ministra portuguesa da Cultura, Isabel Pires de Lima, publicado no Diário de Notícias de 11/04/2016, a propósito da exclusão da obrigatoriedade do ensino da literatura portuguesa no Brasil.]
No Brasil, tem-se assistido a vivo debate em torno do fim da obrigatoriedade do ensino da literatura portuguesa proposta pelo Ministério da Educação. Este parece ser um processo de apagamento da literatura portuguesa em nome de critérios políticos nacionalistas e de preconceitos pós-coloniais.
Não pretendo discutir a legitimidade desses critérios, apenas procuro tentar perceber enquanto professora de Literatura Portuguesa como as coisas se passam num país cuja literatura se escreve em língua portuguesa e cuja formação está umbilicalmente ligada à nossa literatura. A matriz cultural brasileira, como país que nasceu de um processo de colonização levado a cabo por europeus, é preponderantemente ocidental, como em toda a América, de norte a sul. Essa matriz esmagou, antes e depois da independência, as culturas indígenas e incorporou mais ou menos subterraneamente as culturas africanas que os escravos transportaram. Este facto, agradando ou não aos povos da América, não pode ser modificado, porque pertence a passado histórico encerrado, nem pode ser ignorado sob pena de lhes ser improvável autodefinirem-se do ponto de vista identitário em plena posse de si e das circunstâncias que lhes couberam. O presente não pode ganhar transparência senão em função da compreensão e da não ocultação do passado.
Quero com isto dizer que não entendo como se poderá ignorar a literatura portuguesa quando se quer falar da criação do Brasil, da sua história e da sua literatura. Quero com isto perguntar que será feito do texto fundador, Carta do Achamento do Brasil, de Pero Vaz de Caminha? Quero com isto perguntar que será feito de Padre António Vieira e dos seus sermões? Quero com isto perguntar como serão lidas Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, ou Marília de Dirceu, de Tomás António Gonzaga? Quero com isto perguntar como se lê o romantismo brasileiro sem o diálogo com o romantismo europeu através da intermediação em língua portuguesa do romantismo português? Quero com isto perguntar como se lê Machado de Assis ignorando o diálogo de surdos entre ele e Eça de Queirós? Enfim, quero com isto perguntar se uma literatura que se escreve em português pode permitir-se ignorar um dos génios literários da modernidade chamado Fernando Pessoa, na obra do qual cabe o mundo, para além desse mundinho português glorificado em Mensagem?
Não há culturas nem literaturas indígenas e puras. A literatura portuguesa nasceu em galego-português, escreveu-se durante muito tempo em latim e em castelhano, isto já depois de nos termos tornado independentes, no século XII, e depois de termos sido colonizados por romanos, por povos germânicos, por árabes e por fim colonizados, durante um século, por castelhanos. Todas as culturas resultam de miscigenações, fruto de contactos violentos ou cordiais, de invasões, colonizações, ocupações em que os povos de todo o mundo se viram envolvidos. E assim todas as línguas se vão "crioulizando".
Ao pretender privilegiar, por razões de estratégia político-económica pós-colonial, o diálogo cultural sul-sul, em detrimento e não em convergência com o diálogo norte-sul, o Brasil está a dar uma espécie de grito do Ipiranga fora de tempo face à velha Europa. Prescindir do contacto estreito com uma literatura que só prestigia a língua em que o Brasil fala e com uma cultura europeia e atlântica à qual a identidade brasileira estará para sempre indelevelmente ligada a montante, como a portuguesa estará relativamente à brasileira, a jusante, em nada fortalece o Brasil, a sua identidade e o seu poder de influência.
Um grupo de nações pós-coloniais livremente constituiu uma plataforma linguístico-cultural e geopolítica chamada CPLP, atravessada por um rio de nome língua portuguesa. Ignorar qualquer um dos afluentes de diferentes origens que o engrossam é pactuar no nosso comum e individual autodesconhecimento. Por isso defendo vivamente a obrigatoriedade da integração do estudo de textos literários de todos os países de língua portuguesa nos programas do ensino básico e secundário dos países da CPLP. Tenho até alguma simpatia, apesar das dificuldades e perplexidades que pode suscitar, por uma proposta recentemente defendida por Vítor Aguiar e Silva, da criação de um cânone literário escolar que vise dar a conhecer aos alunos de todo o mundo de língua portuguesa a especificidade das diferentes literaturas nacionais e a diversidade da própria língua.
Uma última pergunta, pois descentrarmo-nos um pouco de nós mesmos constitui bom exercício: que pensaríamos dos EUA se não fizessem os seus estudantes do ensino médio ler Shakespeare? Ou dos países ibero-americanos de língua espanhola se ignorassem a grandeza literária de Cervantes?
In "Diário de Notícias" de 11 de abril de 2016.