Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Esta questão foi-me colocada por um estrangeiro que está a aprender português.

Na frase «tu nunca _____ fome», o verbo ter pode ser conjugado tanto no pretérito perfeito (p.p.) como no pretérito imperfeito (p.i.), tendo as frases resultantes significados diferentes:

«Tu nunca tinhas fome.»(p.i.) – entendo esta frase como: «Nesse período em particular tu não passaste fome» – vs «Tu nunca tiveste fome» (p.p.) – entendo esta frase como: "Tu nunca passaste fome na vida."

Neste caso, aparentemente, o pretérito imperfeito define um período específico, enquanto o pretérito perfeito se refere a um período indefinido de tempo. Tenho, portanto, bastante dificuldade em explicar o que se está aqui a passar gramaticalmente.

Podem esclarecer-me esta dúvida, por favor?

Resposta:

Sem outro contexto, que poderia determinar uma interpretação distinta das frases apresentadas, procuraremos indicar algumas diferenças basilares entre os usos dois tempos verbais, pretérito imperfeito do indicativo e pretérito perfeito do indicativo, em frases simples.

O pretérito perfeito do indicativo é um tempo usado sobretudo para localizar a situação descrita pelo verbo no passado, ou seja, num tempo anterior ao momento da fala. Para além desta localização temporal, o pretérito perfeito apresenta a situação como concluída, terminada. Assim, a frase (1)

(1) «Tu nunca tiveste fome.»

pode ser interpretada como afirmando que, num momento passado, o interlocutor não teve em nenhuma ocasião fome, sendo a situação descrita como concluída, pelo que se poderia acrescentar à frase o sintagma «até ao momento».

O pretérito imperfeito do indicativo é normalmente um tempo que se associa a uma referência temporal ou a uma outra oração. Sendo utilizado de forma independente, o imperfeito pode traduzir um valor habitual, ou seja, descrever uma dada situação como repetida num momento anterior ao da enunciação. Assim, a frase (2)

(2) «Tu nunca tinhas fome.»

pode estar associada à descrição do tu como sendo alguém que, no passado, nunca viveu a situação de ter fome, o que se repetiu em diversas ocasiões.

Deste modo, a frase (1) perspetiva a situação como um todo já concluído e localizado no passado. A frase (2) perspetiva a situação como um conjunto de situações que se repetiram de igual forma num tempo passado.  

Relativamente à diferença entre estes dois tempos, ver também «

Pergunta:

No último teste de português, fiquei com dúvidas quanto ao recurso expressivo presente na frase «Não o levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas, nem as baixelas, nem as joias».

Será que se trata de uma enumeração apenas ou também encontramos uma gradação?

Resposta:

A citação apresentada pela consulente pertence ao Sermão de Santo António, de Padre António Vieira.

Neste excerto, o autor faz uso de uma enumeração, através da qual apresenta os bens nos quais os homens do Maranhão não gastam o seu dinheiro (preferindo endividar-se comprando os retalhos de pano que vestem). A enumeração consiste na apresentação de um inventário de coisas relacionadas entre si1. Neste caso, o autor enumera todos os bens nos quais os homens poderiam gastar o seu dinheiro, para, por contraste, mostrar como o dinheiro é desperdiçado nos panos que por vaidade compram.

Não se trata de uma gradação, uma vez que este recurso expressivo, que é um tipo específico de enumeração, se caracteriza por apresentar uma série de elementos numa ordem ascendente ou descente, o que neste caso não se verifica2. Podemos assinalar um uso de gradação no mesmo texto de Padre António Vieira, quando, no capítulo 5, se faz a descrição do polvo:

(1) «[…] um monstro tão dissimulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso e tão conhecidamente traidor!»

Disponha sempre!

 

1. Cf. E-dicionário d...

Hífen, sim!
Casos em que o hífen é obrigatório

O hífen coloca muitos problemas na escrita. Ou porque está a mais ou porque está a menos. Carla Marques recorda algumas regras de uso do hífen que poderão contribuir para uma ortografia mais rigorosa. 

Pergunta:

Na frase:

«As redondilhas da lírica tradicional de Camões têm influência da poesia palaciana.»

qual a função sintática desempenhada pelos constituintes: «da lírica tradicional», «de Camões» e «palaciana»?

E na frase:

«O soneto petrarquista influenciou Camões»

qual a função sintática de «petrarquista»?

E ainda na frase:

«A poesia camoniana apresenta marcas clássicas»

[o que são] «camoniana» e «clássicas»?

Grata pela atenção.

Resposta:

Nas frases

(1) «As redondilhas da lírica tradicional de Camões têm influência da poesia palaciana.»

(2) «O soneto petrarquista influenciou Camões.»

(3) «A poesia camoniana apresenta marcas clássicas.»

(i) os constituintes «da lírica tradicional», «palaciana» (frase (1)) e «clássicas» (frase (3)) têm a função de modificador do nome restritivo, porque incidem sobre o nome introduzindo-lhe propriedades que o nome não possui e restringindo a sua denotação;

(ii) os constituintes «de Camões» (frase (1)), «petrarquista» (frase (2)) e «camoniana» (frase (3)) desempenham a função de complemento do nome porque os nomes redondilhas, soneto e poesia denotam obras culturais que pedem complemento1, nomeadamente a indicação do autor, como acontece nas frases apresentadas.

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações sobre os complementos de nome 1. Pcf. Raposo 

Pergunta:

Nas frases "Ele pensou que ela não voltaria tão cedo." ou "Todos acreditaram que a verdade viria à superfície.", as orações completivas desempenham a função de complemento oblíquo ou complemento direto?

Dado que os verbos "pensar" e "acreditar" selecionam a preposição "em", parece-me que a substituição pelo pronome "isso" resulta agramatical: "Ele pensou isso." ou "Ele acreditou isso." Não deverá dizer-se "Ele pensou nisso." ou "Ele acreditou nisso." ? Inclino-me mais para que sejam complementos oblíquos mas posso estar enganada.

Obrigada.

Resposta:

As orações subordinadas substantivas completivas das frases apresentadas têm a função sintática de complemento oblíquo.

Os verbos que regem preposições podem admitir dois tipos de construção:

(i) com grupos nominais, situação em que é obrigatória a presença da preposição a introduzir este constituinte:

     (1) «Ele acredita na versão da Rita.»

(ii) com orações subordinadas completivas, situação em pode ser admitida a supressão da preposição regida pelo verbo da oração subordinante:

     (2) «Ele insistiu em que a Rita tinha razão.»

     (3) «Ele insistiu que a Rita tinha razão.»

Note-se que, com o verbo acreditar, a supressão da preposição parecer ser mesmo a opção preferida dos falantes:

      (4) «Todos acreditaram que a Rita tem razão.»

      (5) «?Todos acreditaram em que a Rita tem razão.» 

A forma de identificar a função sintática da oração subordinada completiva pode passar pela possibilidade de pronominalização e pelo cotejo com o comportamento de um grupo nominal que surja no seu lugar.  Assim, na frase (6a) fica patente a possibilidade de substituição da oração que complementa o verbo acreditar por preposição seguida da forma tónica de um pronome neutro (neste caso, isso), o que sinaliza a função de complemento oblíquo, e a sua equivalência a um grupo nominal introduzido pela preposição em, na frase (7), o que também assinala a presença da função de complemento oblíquo1.

(6) «Todos acreditaram que a verdade viria à superfície.»

 (6a) «*Todos o acreditaram.» / «Todos acreditaram nisso.»

(7) «Todos acreditaram na verdade.»

A análise da frase que inclui o verbo pensar&#x...