Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber em que medida a expressão seguinte configura uma catáfora. O exercício, de um exame de português de 12.º ano, diz assim:

«O recurso à expressão "tudo o que Fernando Pessoa não pode ser" configura uma... Catáfora, reiteração, anáfora ou elipse. (Escolha múltipla)»

As soluções indicam «catáfora».

Contexto: «(...) a verdade é que é de Caeiro que irradia toda a heteronímia pessoana, pois ele é tudo o que Fernando Pessoa não pode ser: uno porque infinitamente múltiplo, o argonauta das sensações, o sol do universo pessoano.»

Neste caso «ele» é o correferente, e «tudo o que o Fernando Pessoa não pode ser», o referente, uma vez que na catáfora o correferente aparece antes do referente?

Gostaria que me elucidassem, pois fiquei confusa.

Obrigada.

Resposta:

A catáfora é um processo linguístico no qual, na linearidade textual, uma expressão remete para uma expressão que surge depois e que constitui a expressão referencial. 

Assim, na frase (1), os pronomes elea são catafóricos, uma vez que apontam respetivamente para «o João» e «a Maria», grupos nominais que os seguem.

(1) «Ele encontrou-a. A Maria era o que faltava ao João.»

No caso em apreço, a oração «tudo o que Fernando Pessoa não pode ser» predica sobre «ele», mas não encontra a sua referência neste pronome, que, por sua vez, tem como referência Caeiro. A oração em causa aponta para o grupo de palavras que se encontra após os dois pontos (que anunciam exatamente a enumeração do «tudo»). Assim, do ponto de vista semântico, afirma-se que Caeiro é uno, argonauta das sensações e o sol do universo pessoano, ou seja, todas estas realidades que Fernando Pessoa não tem possibilidade de ser. 

Disponha sempre!

 

Pergunta:

Desejava saber se o advérbio de negação desempenha a função sintática de modificador do grupo verbal.

Por exemplo:

«Eu não o tenho visto ultimamente.»

Análise sintática: «Eu» – sujeito simples; «não o tenho visto ultimamente» - predicado; «o» – complemento direto; «ultimamente» – modificador do grupo verbal (O advérbio não não desempenha nenhuma função sintática.)

ou

«(…) não» – modificador do grupo verbal; «o» – complemento direto; «ultimamente» – modificador do grupo verbal

A minha dúvida advém do seguinte:

1. Os modificadores do grupo verbal dão-nos informações acessórias sobre a realização da ação, isto é, indicam-nos as circunstâncias da realização da ação (como os antigos complementos circunstanciais);

2. Nunca vi na antiga terminologia gramatical um complemento circunstancial de negação;

3. Na verdade, com um não não estamos a modificar a ação/dar informação sobre as circunstâncias da realização da ação – estamos apenas a negar essa ação (frase afirmativa vs. frase negativa). Será que “negar a ação” é “modificá-la”? Se se considerar que estamos a “modificá-la”, não existe aqui uma certa confusão conceptual?

Consultei o Dicionário Terminológico (DT), que nos apresenta o seguinte, a propósito do advérbio de negação: «Advérbio de negação Advérbio cujo significado contribui para reverter o valor de verdade de uma frase afirmativa ou para negar um constituinte. Este advérbio pode ser um modificador do grupo verbal ou de um constituinte do grupo verbal.»

Negação frásica:

(i) O João [não] comprou flores à Ana.

[Análise sintática desta frase: «O João» – sujeito simples; «não comprou flores à Ana» – predicado; «não» – modificador do grupo verbal (???); «flores» – complemento direto; à Ana – complemento indireto]

Negação de constituinte:

(iii) O João [com...

Resposta:

O advérbio não desempenha, na frase apresentada em (1), a função de modificador do grupo verbal:

(1) «Eunão o tenho visto ultimamente.»

Com a entrada em vigor da Terminologia Linguística para o Ensino Básico e Secundário (TLEBS) e mais tarde do Dicionário Terminológico (DT), a função sintática de complemento circunstancial deixou de constar dos programas do ensino não superior em Portugal. Contudo, não podemos considerar que houve apenas lugar a uma mudança de nome da função sintática. O complemento circunstancial era preenchido por constituintes que dessem informações sobre várias circunstâncias (tempo, espaço, modo …), ou seja, este era identificado sobretudo por critérios semânticos.

No novo quadro orientador dos estudos gramaticais, as funções sintáticas são consideradas não por aquilo que significam, mas pela relação que mantêm com o verbo. Assim, este assume dois tipos de relações sintáticas com os constituintes que integram o predicado verbal:

(i) os constituintes são argumentos do verbo, ou seja, são expressões que completam o sentido do verbo e sem as quais este não forma uma frase completa e correta do ponto de vista sintático. Nesta situação, estão os constituintes com função de complemento direto, complemento indireto e complemento oblíquo;

(ii) os constituintes não são argumentos do verbo, ou seja, não são pedidos por este para completar o seu sentido e, portanto, não são obrigatórios, podendo ser omitidos da frase sem prejudicar a sua g...

Pergunta:

Quanto à flexão, qual a indicação da gramática normativa quando, a despeito de figurar em construção de voz passiva, o infinitivo servir de complemento a adjetivo e ostentar o mesmo sujeito da oração principal?

A título de exemplo: «Os exercícios são difíceis de ser/serem resolvidos.»

Ainda, passando-se à segunda oração à construção passiva pronominal, devemos enveredar pela flexão do infinitivo passivo ou pela não flexão do infinitivo complemento?

«Os exercícios são difíceis de se resolver/resolverem.»

Resposta:

Na oração infinitiva, o uso de infinitivo simples (não flexionado) é considerado a construção normativa:

(1) «Os exercícios são difíceis de ser resolvidos.»

 Não obstante, para alguns falantes é também aceitável a opção pelo infinitivo pessoal (flexionado):

(2) «Os exercícios são difíceis de serem resolvidos.»

Note-se que, nas frases anteriores, o grupo nominal «os exercícios» é sujeito semântico do verbo da oração subordinada, o que corresponde a uma construção como (3), na forma passiva, ou (4), na forma ativa:

(3) «É difícil os exercícios serem resolvidos.»

(4) «É difícil resolver os exercícios.»

Esta construção sofreu uma construção de elevação, que consiste numa situação em que o sujeito ou o complemento do verbo da oração subordinada passa a sujeito da oração principal, mantendo-se sujeito semântico ou complemento semântico da subordinada, como acontece na passagem do exemplo (4) a (1).

A frase (5) é igualmente possível, sendo de novo preferível o uso do infinitivo não flexionado (embora seja também aceitável o infinitivo flexionado):

(5) ««Os exercícios são difíceis de se resolver.»

Neste caso, estamos perante uma construção com a variante incoativa do verbo, ou seja...

Pergunta:

Gostaria de resolver uma dúvida em relação aos particípios duplos. Geralmente, costuma dizer-se que o particípio regular se usa para a formação dos tempos compostos com o auxiliar ter, e o irregular na voz passiva com os auxiliares estar e ficar, ainda que existam algumas exceções (ganho, pago... etc.).

A minha pergunta é: qual é o particípio que deveria ser utilizado quando a forma funciona como adjetivo?

Por exemplo, na frase «o quadro aceitado/ aceite receberá um prémio de 3000€», qual seria a forma correta?

Muitíssimo obrigada pela atenção.

Resposta:

No caso em apreço, a opção correta será:

(1) «O quadro aceite receberá um prémio de 3000€.»

Como refere a consulente, alguns verbos transitivos são abundantes, ou seja, caracterizam-se por terem particípios curtos, que não seguem o padrão regular de formação do particípio, e particípios regulares, que obedecem ao padrão de formação do particípio. O verbo eleger é disto um exemplo, uma vez que tem um particípio regular (elegido) e um particípio curto (eleito).

A distribuição dos usos destas duas formas está relacionada com o estatuto do particípio:

(i) usa-se a forma regular quando o particípio tem estatuto verbal, ou seja, nos tempos compostos, com os auxiliares ter e haver;

(ii) usa-se a forma curta com os auxiliares ser e estar, «quando os particípios têm algum valor adjetival, morfológico ou sintático-semântico – ou seja, na voz passiva e nas orações copulativas», acrescentam Veloso e Raposo (in Raposo et al. Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1490).

(iii) a forma curta usa-se também quando o particípio funciona como um adjetivo desempenhando a função de modificador do nome, tal como acontece no exemplo (1).

Note-se, porém, que estas regras são apenas indicativas e muitos falant...

Um uso brutal
Da extensão dos sentidos de uma palavra

O adjetivo brutal evoluiu dos sentidos negativos e disfóricos para o seu contrário. Em contextos informais, pode funcionar como uma avaliação extremamente positiva, como recorda Carla Marques