Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
404K

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Podemos chamar lugar a uma aldeia, e a um lugar, aldeia? Ambos são a mesma coisa?

Muitas freguesias têm apenas 200 habitantes, não seriam as mesmas também aldeias? A minha família nasceu toda ''supostamente'' em lugares das freguesias X e Y, mas também os ouço a tratar as suas terras como aldeias. Afinal, ambos são a mesma coisa ou não?

Obrigado.

Resposta:

Na perspetiva da língua corrente, não é possível definir nitidamente a diferença entre aldeia e lugar.

No discurso não especializado, as duas palavras podem ser sinónimas, porque ambas podem referir uma pequena povoação (ou localidade, para empregar um termo muito genérico). Mesmo assim, intuitivamente, dir-se-ia que, por um lado, lugar é termo mais vago do que aldeia, que é vocábulo que remete, geralmente, para a ruralidade; por outro lado, lugar pode designar um aglomerado populacional muito pequeno, mais pequeno até do que aquele que se denomina aldeia.

Num plano já especializado, por exemplo, em estudos de geografia humana e demografia, também se pode considerar que lugar ocorre como nome da mais pequena unidade populacional, conforme propõe Bernardo de Serpa Marques, "Os recenseamentos da população e a definição geográfica dos lugares" (Estatísticas & Estudos Regionais – Região Norte, nº 2, INE, 1993, p. 34 - 41):

«Tenho defendido [...] que o termo lugar, como designativo de uma forma de aglomeração humana, corresponde a um elemento base – o mais simples – de toda a gama de agrupamentos de edifícios. Ele faz parte de um conjunto de termos, tais como povoação e aglomerado populacional, que têm conotação de diferente intensidade na linguagem corrente e no entendimento dos cidadãos, a ponto de serem usados frequentemente para designar posições distintas de uma escala hierárquica. Dos termos citados, o único que, a meu ver, traduz um conceito mais abrangente é povoação. A dimensão das povoações varia entre as mais diminutas, coincidentes com um simples lugar, e as grandes cidades, nas quais é possível identificar centenas de lugares.[...]»

Pergunta:

Atualmente, encontro-me a fazer um trabalho sobre a toponímia da freguesia de Évora Monte [no concelho de Estremoz]. Um dos desafios passa pela pesquisa do étimo de algumas palavras, como Ossa, que dá nome à serra onde Évora Monte se situa.

[...] Creio, de acordo com as pesquisas que já fiz, que é uma palavra latina, que provavelmente deriva da palavra osso. É o que tenho, mas estou na esperança que me possam adiantar mais alguma informação.

Obrigada pela atenção dispensada.

Resposta:

Há quem atribua Ossa ao feminino de osso, forma arcaica de urso. Tal era a proposta do filólogo Leite de Vasconcelos (1858-1941), que, nas Lições de Filologia Portuguesa (1926, pp. 233-237), dedica algumas páginas à série toponímica formada por nomes atribuíveis ao referido arcaísmo: Sais (em Resende e atestado como Ossaes na Idade Média), Osseira (Caldelas da Rainha e, também sob a forma Usseira, em Óbidos), Oseira (Cea, Ourense, Galiza), Ossela (Oliveira de Azeméis) e Ossa, o nome em apreço, que Leite de Vasconcelos também identifica como um nome de lugar no concelho de Arouca1.

Contudo, há igualmente quem proponha – caso de A. Almeida Fernandes em Toponímia Portuguesa. Exame a um Dicionário (1999) – que o topónimo (orónimo, ou seja, nome de monte, serra ou montanha) alentejano bem como a maioria dos nomes antes enumerados poderão ter em comum uma mesma raiz pré-romana, com a forma os- e o vago significado de «elevação».

Trata-se, portanto, de um topónimo cuja origem é difícil de determinar, pela falta de atestações – embora as mais antigas pareçam do século XIII (ibidem) e, ao contrário de muita da toponímia portuguesa meridional, não apresentem clara interferência árabe.

1 Leite de Vasconcelos retoma esta série de forma muito sintética nos Opúsculos, volume III – Onomatologia (1931, pp. 195 e 464). Ver também o

Pergunta:

Ocasionamento é um neologismo, mas encontra-se dicionarizado no Dicionário Michaelis como substantivo masculino.

Minha dúvida é se é errado usá-lo, por exemplo em texto ou se uma pessoa falar em algum vídeo.

Grata.

Resposta:

Não se trata propriamente de neologismo, pois ocasionamento já encontra registo na 1.ª edição do Dicionário Houaiss, em 2001, com o significado de «ato ou efeito de ocasionar». Exemplo de uso: «É preciso evitar o ocasionamento de mais prejuízos» (cf. Google).

Observe-se, contudo, que o registo diconarístico desta palavra não é frequente, pelo menos, no momento em que se escreve esta resposta, quando se consultam fontes elaboradas em Portugal (Infopédia, Priberam). Falta também nos vocabulários ortográficos (cf. Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa e no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras). Mesmo assim, não é esta escassez de registos motivo suficiente para rejeitar ocasionamento, que é palavra bem formada, derivada do tema do verbo ocasionar, usado nas aceções de «motivar, causar» e «produzir-se, ocorrer» (Dicionário Houaiss).

Pergunta:

«Assinar de cruz» é aprovar, "assinar" um texto sem o ter percebido ou "lido" – é geralmente fácil de perceber. Mas qual a origem?

Gostaria de confirmar a resposta que um dia a minha formação académica (de que estou há quase 30 anos desligado) me terá dado azo a conhecer.

Antigamente, quando a falta de instrução e o analfabetismo, e/ou o iletrismo, eram uma extensa e triste mancha na nossa sociedade, as pessoas que não sabiam ler ou interpretar um texto (geralmente um documento que lhes respeitava: contrato, declaração...) "assinavam" com uma cruz, depois de o notário, advogado, conservador lhos terem (talvez...) lido e explicado. O que posteriormente, e na atualidade, em idênticas circunstâncias, no próprio documento viria a ser declarado num texto igual ou equivalente ao seguinte (resumido): «... foi lido e explicado à/ao ... que não assinou por não saber...»

Aguardo o favor da vossa resposta.

Obrigado.

Resposta:

A explicação proposta é que se aceita geralmente, mesmo noutras línguas europeias, faladas em países onde também o desenho de uma cruz – o sinal X – era procedimento comum para quem não sabia escrever e tinha de validar um documento.

A versão em francês do artigo sobre assinatura na Wikipédia (consultada em 07/04/2022), confirma esta motivação, muito embora não identifique fontes académicas:

«Au Moyen Âge, les lettrés comme les illettrés peuvent apposer un seing (du latin signum) sur des contrats, de la correspondance. Souvent ce ne sont que des croix autographes, mais ces seings peuvent aussi être un monogramme, des paraphes mis au bout de la signature (initiales ou toute autre symbolique permettant une double authentification), des maximes, un seing manuel royal [...], voire la marque des armoiries autographes ou créées par des sceaux et cachets, en fait tout motif symbolique peut être représenté.» [tradução livre: «Na Idade Média, tanto as pessoas alfabetizadas como os analfabetos podiam apor uma assinatura (em francês seing, do latim signum) a contratos e à correspondência. Muitas vezes essas assinaturas são apenas cruzes autógrafas, mas  também podem ser monogramas, rubricas colocadas no final da assinatura (iniciais ou qualquer outro sinal que permita dupla autenticação), máximas, subscrições autógrafas reais, ou até a marca de brasões autógrafos ou criados por selos e carimbos, na verdade, qualquer motivo simbólico pode ser representado.]

Não foi possível aqui reunir informação em português sobre a história do uso deste sinal, mas a expressão «assinar de cruz» encontra definição em dicionários gerais. O

Pergunta:

A expressão «por quem sois, senhora minha» significa o quê. E em que circunstâncias se usa? E qual a sua origem?

Resposta:

Para elaboração desta resposta, não se encontrou informação precisa sobre os factos que motivaram a expressão.

Num comentário a um artigo do blogue Certas Palavras – portanto, não do autor dos conteúdos deste espaço –, encontra-se a indicação de que a expressão se relacionaria com as guerras miguelistas, talvez aludindo a uma situação em que se toma partido por um dos lados em guerra. Esta hipótese é muito discutível.

Contudo, como a expressão, tal como outra semelhante – «por quem é» –, ocorre quando se quer «declinar um favor ou evitar incómodo da parte de outrem» (Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático, de Énio Ramalho), mais plausível se afigura interpretar a expressão do seguinte modo: «o facto de serdes quem sois dispensa-vos do agradecimento» ou «sois pessoa tão excelente que não tendes de agradecer a ninguém». Será, portanto, uma manifestação de cortesia superlativa.