Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual a maneira correcta: «praia da Parede», ou «praia de Parede»?

Resposta:

Quem viva na região de Lisboa sabe que o topónimo em apreço ocorre com artigo definido: «mora na Parede». Também assim o atesta uma página do sítio da junta de freguesia desta vila: «A Parede está integrada no concelho de Cascais, no distrito de Lisboa e na província da Estremadura.» Tendo em conta que Parede tem origem num substantivo concreto, parede, compreende-se a presença do artigo definido, e, portanto, recomenda-se a sequência «a praia da Parede».

Contudo, é importante ressalvar que nem sempre os topónimos com origem em substantivos concretos se empregam com artigo definido (cf. «moro na Figueira da Foz» vs. «dormi em Figueira de Castelo Rodrigo»). Além disso, em certas denominações oficiais, acontece que se suprime frequntemente o artigo definido, talvez para dar maior formalidade. É o que acontece exatamente na página da fonte atrás mencionada: «A freguesia de Parede é uma das seis que compõem o concelho de Cascais [...].» Este uso confere um tom afetado à expressão, pelo que dizer «a praia de Parede» acaba por soar pouco natural.

Pergunta:

Ouvi dizer isto num documentário, mas não é a primeira vez que me deparo com casos semelhantes:

«Nessa altura ela (subentende-se que estão a falar de uma igreja) foi construída para homenagear o santo padroeiro.»

Queria saber se aqui é correto usar o pronome pessoal para fazer referência a um objeto e não, como eu esperaria que fosse, esta, isto é, um pronome demonstrativo. Este é um caso que já observei ser de uso comum no Brasil, mas nem tanto em Portugal, e queria saber se poderia ser uma questão de influência e se, como referi, é correto.

Muito obrigada.

Resposta:

Seria necessário ter acesso ao contexto mais alargado da frase, para emitir um juízo com margem de segurança e confirmar que esta seria uma ocorrência mais correta ou estilisticamente mais adequada no português de Portugal.

Muitas vezes, este ou outro pronome demonstrativo pode revelar-se muito vago e gerar dificuldades na coesão textual. Por exemplo:

1 – A Igreja de Nossa Senhora das Neves é um monumento que data provavelmente dos tempos de Afonso III das Astúrias, quando em 872 o seu exército se aventurou pelos confins das Beiras. Nessa altura, ?esta/?aquela/OK ela foi construída para homenagear o santo padroeiro...

Em 1, a expressão «a igreja...» está demasiado afastada de esta, para tornar aceitável a ocorrência deste demonstrativo. Também o emprego de aquela torna a ligação semântica da sequência pouco natural, porque este demonstrativo costuma aparecer em correlação com este (exemplo: «Visitei uma igreja em Soure e uma capela em Tentúgal: esta estava fechada, mas aquela estava aberta ao público»). O pronome ela acaba por ser uma boa opção para retomar anaforicamente «a igreja...».

De qualquer modo, em Portugal, é opinião que o emprego do pronome sujeito de 3.ª pessoa do singular em referência a coisas se deve evitar – embora não seja impossível tal uso, conforme se observa na Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, p. 910):

«Os pronomes pessoais de 3.ª pessoa nominativos (com a função de sujeito), dativos (com a função de complemento indireto), oblíquos (com a função de complemento de uma preposição) e possessivos (com a função de complemento ou modificador de um nome) são usados sobretudo para designar seres hu...

Pergunta:

Depois do acordo ortográfico, "primeira-dama" com hífen? "Sub-império"? "Semiescravo"? "Primeiro-ministro"?

Muito obrigada.

Resposta:

A palavra primeira-dama não sofreu nenhuma alteração com a a aplicação do Acordo Ortográfico, ou seja, escrevia-se e escreve-se com hífen.  O mesmo se diga acerca de primeiro-ministro:: os compostos de numeral ou adjetivo  + substantivo, como é o caso, se tinham hífen, mantêm-no. Quanto aos outros casos: subimpério não se hifeniza, porque o prefixo sub- se liga sem hífen a palavra prefixada que comece por vogal (cf. subimbrical); e semiescravo também se escreve sem hífen (cf. semiespecializado), a não ser que o prefixo seja seguido de palavra começada por i (semi-interno) ou h (semi-humano).

Sobre o uso do hífen em compostos e palavras prefixados, ver os Textos Relacionados (na coluna do lado direito) e, ainda, as Bases XV e XVI do Acordo Ortográfico de 1990 (sobre o hífen em compostos, locuções e encadeamentos vocabulares e

Pergunta:

«(...) A palavra migratório está indevidamente usada. A maioria das pessoas que está a chegar [à Europa] são pessoas que fogem aos conflitos, à guerra. Estamos, de facto, perante uma crise que é, essencialmente, uma crise de refugiados, e não uma crise migratória. No caso italiano, haverá 50/50 das duas situações: migração económica e perseguição política ou fuga ao conflito. Mas, do lado grego, que é o que agora importa, a esmagadora maioria, mais de 80%, são pessoas a fugirem de situações de conflito absolutamente dramáticas, a tentarem salvar as suas vidas e a tentarem reconstruir o seu futuro» [António Guterres, alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados, em entrevista à Rádio Renascença].

Havendo no Ciberdúvidas vários esclarecimento sobre a diferença entre emigrante e imigrante, a verdade é que em nenhum deles se faz a distinção do termo migrante. Pergunto por isso: há razão nesta chamada de atenção de António Guterres? Trata-se de mais uma impropriedade semântica, tão comum na comunicação social portuguesa, como são os casos "perdidos" das tragédias que passaram a ser «humanitárias» e os dias de sol tornados «solarengos», por exemplo?

Os meus agradecimentos.

Resposta:

O que António Guterres diz prende-se com uma distinção conceptual que tem implicações jurídicas e políticas, porque classificar um indivíduo como simples migrante (ou imigrante, do ponto de vista dos países de chegada) não obriga a acionar os mesmos mecanismos legais e políticos que decorrem de considerá-lo como refugiado. Por outras palavras, a quem foge a um conflito, deve aplicar-se o termo refugiado, e não migrante; portanto, o agravamento, sobretudo no verão de 2015, da situação criada na Europa com a chegada maciça de pessoas que fogem da guerra na Síria e no Iraque configura não uma «crise migratória» mas, sim, uma «crise de refugiados». É esta a perspetiva semântica e referencialmente adequada, tanto do ponto de vista da língua corrente como no plano da terminologia usada no direito internacional, conforme se explica em seguida.

Aprofundando um pouco mais as vertentes linguísticas do problema:

1 – O caso apresentado tem semelhanças, mas não é exatamente do tipo em que se incluem os usos impróprios de humanitário e solarengo. Nestes dois casos (que também não são exatamente do mesmo subtipo), verifica-se que os adjetivos se associam indevidamente a substantivos...

Pergunta:

Verifico que o verbo dependurar existe, sendo equivalente a pendurar. Pergunto se é correta a expressão «ao dependuro», equivalente a qualquer coisa como pendurado ou dependurado.

Obrigado.

Resposta:

Trata-se de uma expressão popular que é correta e pode ter uso literário, embora não tenha cabimento num texto formal utilitário. O seu significado é o mesmo que o de pendente, pendurado ou dependurado.

O dicionário de regionalismos Língua Charra (Lisboa, Âncora editora, 2013), de A. M. Pires Cabral, regista «ao dependuro» (ver dependuro, idem) como expressão sinónima de «ao pendurão» (ver pendurão, idem), a qual é equivalente ao adjetivo pendente (exemplo: «Estava com um ar inocente, afora a língua ao pendurão», ibidem). O uso de «ao dependuro» está atestado na obra de Camilo Castelo Branco: «Acordei com a cabeça ao dependuro» (Camilo C. Branco, O Santo da Montanha, citado pela fonte consultada). O referido dicionário regista ainda outra variante – «ao dependurão».