Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Aqui em Pernambuco temos chácara, fazenda e sítio. As três palavras referem-se a propriedades rurais. Minha dúvida consiste em dizer exatamente quando certa propriedade rural é chácara, fazenda ou sítio. Conto com vossa ajuda.

Agradeço-vos desde já.

Resposta:

Quando se trata de definir a diferença entre palavras que têm significados próximos e se referem a realidades criadas por determinado contexto cultural, torna-se difícil facultar definições exatas, porque termos e realidades designadas estão inevitavelmente sujeitos a fenómenos de variação, sobretudo a nível regional. De qualquer modo, e apenas com base no Dicionário Houaiss, propõem-se as seguintes distinções:

chácara: «propriedade rural voltada para a avicultura, a pequena criação de animais, o plantio de frutas, legumes etc.», «pequena propriedade campestre, frequentemente destinada ao lazer; casa de campo», «grande propriedade urbana, com habitação e área verde»;

sítio: «estabelecimento agrícola de pequena lavoura», «chácara ou moradia rural nas redondezas de uma cidade», «trato de terra cedido ou arrendado a moradores ou lavradores de engenho de açúcar, mediante partilha dos frutos ou prestação de serviços»;

fazenda: «propriedade rural de dimensões consideráveis, de lavoura ou de criação de gado».

Em síntese, a fazenda tem grandes dimensões, mas são de extensão mais modesta as propriedades chamadas chácara ou sítio. Entre chácara e sítio, parece avultar a possibilidade de a primeira ter caráter urbano, enquanto sítio tende a designar uma propriedade em zona rural, embora possa ser sinónimo de chácara nas imediações de uma cidade (cf. Dicionário Houaiss e Dicionário Unesp do Português Contemporâneo).

Pergunta:

Sabendo que os sons de c e g em latim eram constantes, independente da vogal que os sucedia, pergunto qual é a razão de hoje variar. Noto que inclusive nas outras línguas latinas essas consoantes mudam de som. Também a letra s, pergunto, tinha o som de [z] e [s] simultaneamente em latim?

Agradeço desde já aos consultores.

Resposta:

Os valores fónicos associados às letras c e g variam em português, porque do latim para esta língua ocorreram fenómenos fonéticos de palatalização e fricativização antes das vogais representadas por e e i. Por exemplo: GENTE, em latim, soava aproximadamente "guentê"  mas, no português, passou a gente, que soa "jente"; a forma latina CENTU, que soava "kentu", passou a cento, que soa "sento". Este fenómeno é comum a outras línguas românicas, embora com resultados fonéticos diversos.

Quanto à letra S latina, esta representava sempre em latim clássico uma sibilante surda, [s], pois não existia o [z] de trazer, a não ser em palavras de origem grega (a rigor, não era um [z], mas sim um [dz]). O S latino no meio de palavra é que evoluiu frequentemente para [z] na passagem para o português (MENSA- > mesa). Note-se que o atual [z] do português tem outras origens, por exemplo, em -C- e -TI- latinos: DUODECI- > *dodece (latim vulgar) > doze; sufixo -ITIA > -eza  como em clareza, beleza, já criados em português (cf. s.v. -eza e notas etimológicas de itens assim sufixados no Dicionário Houaiss).

Pergunta:

A expressão «ainda bem que tem tempo» é correta, mas agradecia saber se é correto escrever «ainda bem que» seguido de conjuntivo. Seria adequado dizer «Ainda bem que tenham grandes planos»?

Muito obrigado.

Resposta:

Só pode usar indicativo com «ainda bem que», equivalente a «felizmente que»: «Ainda bem que têm grandes planos» (nunca *«ainda bem que tenham grandes planos»).

Recorde-se que com a locução conjuncional concessiva «ainda que» é que deve usar o conjuntivo: «Ainda que tenham grandes planos, faltam-lhes meios de concretização.»

Pergunta:

Agradecia que comentassem esta minha leitura da Lei n.º 46/2005, de 29 de agosto.

No meu entender e, conforme está escrita (e o que vale é a lei escrita), esta lei diz que o presidente de câmara municipal (o presidente de qualquer câmara) não se pode candidatar a um quarto mandato, quando exerceu o cargo, por três mandatos sucessivos, seja qual for a câmara a que se pretende candidatar pela quarta vez; o mesmo se lendo, no que se refere ao presidente de junta de freguesia. Por outro lado, caso a lei se referisse ao cargo de presidente da câmara municipal ou da junta de freguesia, entendo que se devia ler que o presidente de uma determinada câmara ou junta não se poderia candidatar a essa mesma câmara ou junta de freguesia, para um quarto mandato sucessivo, mas que o poderia fazer para uma câmara ou junta diferente.

Obrigada pelo V. esclarecimento.

Resposta:

A leitura que a consulente propõe parece coincidir com a que a comunicação social portuguesa diz ser a do constitucionalista Jorge Miranda. Segundo essa interpretação, da ausência ou presença do artigo definido depois da preposição de (daí a contração da), decorreriam leituras diferentes: do uso da preposição de depreender-se-ia que as câmaras municipais e as juntas de freguesia seriam referidas genericamente e, portanto, a limitação de mandatos se aplicaria a qualquer órgão autárquico, sem especificar; o aparecimento da contração da legitimaria uma leitura específica («uma certa câmara municipal e uma certa junta de freguesia»), pelo que a lei de limitação dos mandatos apenas diria respeito a estes casos, abrindo, porém, a possibilidade de uma candidatura a novo mandato numa nova autarquia.

Do ponto de vista da coerência textual, creio que para a leitura deste texto é indiferente o uso de de ou da, pois é a construção global do texto que conduz à ambiguidade. Com efeito, mesmo optando pela ausência de artigo definido antes da designação do órgão executivo da autarquia local («o presidente de câmara municipal e presidente de junta de freguesia»), isto é, usando somente a preposição de, deve pensar-se que exercer a função de presidente de tais órgãos pressupõe a existência concreta de uma autarquia; por outras palavras, se eu disser que «Seara [ou Menezes] é presidente de câmara municipal» (sem artigo definido ...

Pergunta:

Existe o verbo tralhar? Pode ser conjugado como qualquer outro da 1.ª conjugação?

Resposta:

O verbo tralhar existe e está registado no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora nas seguintes aceções: «lançar tralha em» e «pescar com tralha». O mesmo dicionário acolhe um homónimo, tralhar, que é variante de talhar, «coagular, solidificar». O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa atribui à forma verbal tralhar mais outro significado: «distribuir a água para a rega». Dado que tem a terminação -ar, ou seja, porque apresenta a vogal temática a, trata-se de um verbo da 1.ª conjugação e não apresenta qualquer irregularidade.