Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Ao menos no Brasil, para se designar a subdivisão administrativa de cunho municipal e local, se diz apenas município; já em Portugal, usa-se sobretudo concelho, mas município também encontra algum uso.

Tenho dúvidas se concelho é, em todas as suas acepções, sinônimo de município. Poderíeis dirimir estas minhas dúvidas?

Quanto à palavra municipalidade, pergunto-vos se ela seria, em todos os sentidos, sinônimo de município e concelho.

Muito obrigado.

Resposta:

Na prática, em Portugal, pode não haver grande diferença entre concelho, município e municipalidade: digamos que o primeiro termo designa o território administrado por um município; o segundo, a própria estrutura autárquica ou a população que é abrangida por ela; e o terceiro, as pessoas eleitas e os funcionários que trabalham numa câmara municipal.

Mesmo assim, tendo em conta apenas os dicionários gerais, pode afirmar-se que, historicamente, os termos não são exatamente sinónimos. O dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (ACL) define as palavras em questão do seguinte modo:

município

1. Hist. Cidade conquistada, no tempo dos romanos, com direito a administrar-se pelas suas próprias leis e cujos habitantes gozavam dos direitos civis da cidadania romana. 2. Circunscrição territorial administrada por uma vereação, por uma câmara municipal, superintendida por um um presidente. ≃ CONCELHO. 3. População que habita num concelho, congregada por interesses comuns. Salientam-se algumas das medidas que vieram beneficiar todo o município: a abertura de novas estradas, a criação do parque de campismo e do museu etnográfico. 4. Bras. Circunscrição administrativa autónoma do estado, governada por um prefeito e uma câmara de vereadores.»1

concelho

«Divisão administrativa de categoria inferior à de distrito. ≃ MUNICÍPIO. Almada é um dos concelhos do distrito de Setúbal. O concelho divide-se em freguesias. «Quando vagou um 1.º andar sobre o armazém de vinhos, então, os meus antepassados atravessaram o Tejo e botaram raízes no concelho de Almada» (R. CORREIA, Tristão, p. 2...

Pergunta:

Diz o Acordo Ortográfico: «... Base XIX... 1. A letra minúscula inicial é usada:... f) Nos axiónimos…» No entanto, diz o n.º 2: «A letra maiúscula inicial é usada:... i) Opcionalmente, em palavras usadas reverencialmente…»

Assim, a letra minúscula é, então, usada, ou opcional?

Agradeço a vossa resposta.

Resposta:

Há, de facto, contradição no texto do Acordo Ortográfico (AO).

O que se lê na íntegra, na Base XIX, 1, f) do AO a respeito da minúscula inicial, é isto:

«1. A letra minúscula é usada [...] f) Nos axiónimos/axiônimos e hagiónimos/hagiônimos (opcionalmente, neste caso, também com maiúscula): senhor doutor Joaquim da Silva, bacharel Mário Abrantes, o cardeal Bembo; santa Filomena (ou Santa Filomena).»

Ou seja, parece que é obrigatório usar minúscula inicial em axiónimos, mas não nos hagiónimos.

Este preceito choca com o que se diz mais adiante no AO [Base XIX, 2, i)], uma vez que um axiónimo é uma palavra ou uma expressão usada reverencialmente:

«i) Opcionalmente, em palavras usadas reverencialmente, aulicamente ou hierarquicamente, em início de versos, em categorizações de logradouros públicos: (rua ou Rua da Liberdade, largo ou Largo dos Leões), de templos (igreja ou Igreja do Bonfim, templo ou Templo do Apostolado Positivista), de edifícios (palácio ou Palácio da Cultura, edifício ou Edifício Azevedo Cunha)

Dado que os axiónimos podem ser de facto palavras usadas reverencialmente, tudo isto significa, portanto, que os exemplos incluídos no AO — senhor doutor Joaquim da Silva, bacharel Mário Abrantes, o cardeal Bembo —, que são axiónimos, podem afinal ter maiúscula inicial no termo designativo do título atribuído («senhor doutor, bacharel, cardeal») se as circunstâncias de comunicação impuserem um tratamento mais cortês ou reverencial. Trata-...

Pergunta:

Posso usar «tanto... quanto» com uma negativa (Ex.: «Tanto eu quanto ele não tínhamos dinheiro»)? Não é obrigatório ser: «Nem eu nem ele tínhamos dinheiro»?

Resposta:

Não é obrigatório. Estão, portanto, corretas as seguintes construções:

1) «Tanto eu quanto ele não tínhamos dinheiro.»

2) «Tanto eu como ele não tínhamos dinheiro.»

3) «Nem eu nem ele tínhamos dinheiro.»

Pergunta:

Num mesmo texto, as palavras Almada, pintor e artista, referentes a Almada Negreiros, são correferentes não anafóricos, ou podemos considerar que se trata de coesão lexical por substituição?

Qual a diferença entre ambas?

Grata.

Resposta:

No caso de pintor e artista, trata-de termos correferentes não anafóricos, porque a sua relação depende do nosso conhecimento do mundo (conhecimento enciclopédico): se Almada Negreiros (1893-1970) não tivesse sido pintor e artista, não poderíamos fazer-lhe referência pela menção dessas atividades.

Já o uso de Almada para referir Almada Negreiros é diferente, porque é a simples repetição de parte do nome, como mecanismo de coesão lexical.

Sobre este assunto, vale a pena recuperar as definições e exemplos da antiga Terminologia Linguística para os Ensino Básico e Secundário (a controversa TLEBS), de cuja revisão resultou o Dicionário Terminológico:

Correferência não anafórica

«Duas ou mais expressões linguísticas podem identificar o mesmo referente, sem que nenhuma delas seja referencialmente dependente da outra. Fala-se, então, de correferência não anafórica [...]. No texto "O Rui foi trabalhar para África. Finalmente, o marido da Ana conseguiu concretizar o seu sonho", as expressões "O Rui" e "o marido da Ana" podem ser correferentes, ou seja, podem identificar a mesma entidade, sem que nenhuma delas funcione como termo anafórico. Naturalmente, só informação de carácter extralinguístico permite afirmar se há ou não correferência entre as duas expressões nominais» (ortografia atualizada).

Coesão lexical

«Mecanismo de coesão textual que envolve a repetição da mesma unidade lexical ao longo do texto ou a sua substituição por outras unidades lexicais que com ela mantêm relações semânticas de natureza hierárquica (hiponímia, hiperonímia) ou não hi...

Pergunta:

Gostaria de saber qual a origem e significado do dito: «dia de São Nunca à tarde».

Obrigado.

Resposta:

A expressão em apreço, escrita «dia de São Nunca à tarde» [ou, melhor, com «à tarde» entre parênteses, «dia de São Nunca (à tarde)], vem registada no Dicionário de Expressões Correntes (Lisboa, Notícias Editorial, 2000), de Orlando Neves, como o mesmo que nunca, sem qualquer comentário sobre a origem da expressão. Não conheço fontes que permitam esclarecer a génese desta expressão.

 

N. E. (24/11/2020) – Sobre a sua situação de uso, a expressão «dia de São Nunca à tarde» ocorre geralmente a propósito daquilo que nunca acontecerá ou de um dia indeterminado (cf. Guilherme Augusto Simões, Dicionário de Expressões Populares, Lisboa, D. Quixote, 1993). Sobre o sentido etimológico da expressão encontram-se algumas hipóteses, por confirmar em bases mais sólidas: por exemplo, no artigo "São Nunca", da Wikipédia em português, cujas referências são pouco ou nada claras. O apontamento "A origem da expressão 'Dia de São Nunca'", na página Mitologia em Português, não explicando a sua origem factual (a qual será difícil de determinar, dado o anonimato em que emergem as expressões idiomática). sugere que a expressão terá sido motivada pelo calendário religioso (santoral) ou versões deste, de cariz mais popular, em que cada dia é...