Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Creio que em Portugal a lei vigente indica que todo o artigo oriundo do estrangeiro e que entra no mercado nacional deverá ser traduzido nomeadamente com a «lei sobre a rotulagem», porém reparei que nos últimos tempos a lei deixou de ser o que era.

Um exemplo concreto é o de uma empresa francesa que comercializa leguminosas embaladas e através da sua filial espanhola implantou a Valerianela locusta com o nome vulgar de canónigos, hispanismo escusado, uma vez que no repositório da «flora digital de Portugal» abundam os nomes vulgares em português para esta planta. Exemplos desses posso ainda citar dois com também duas firmas francesas, uma no sector da panificação em que o termo Millet é utilizado em vez dos diferentes nomes vulgares da língua de Camões, quanto a outra empresa, essa no ramo da cosmética, recorre ao termo Imortelle para uma das espécies de Helichrysum, e quando tentamos perceber o porquê, a resposta é categórica: «os nossos consumidores conhecem melhor esse produto sob essa mesma designação».

A minha pergunta é a seguinte: existe algum organismo que verifique a boa execução da tradução para o nosso idioma?

Caso assim não seja, eu só posso estar pessimista quanto ao futuro do português...

Resposta:

Em Portugal, a rotulagem está regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 560/99, de 18 de dezembro, e pelas Diretivas Comunitárias n.º 97/4/CE e n.º 1999/10/CE. Esta legislação pode ser ser entendida no quadro do processo de integração de Portugal na União Europeia: «[...] com a livre circulação de mercadorias, foi reiteradamente imposta a utilização da língua portuguesa em rótulos e etiquetas de todo o tipo de produtos comercializados no país» (Paulo Feytor Pinto, Política da Língua, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2010, pág. 91).

Não obstante o emprego da língua portuguesa estar contemplado no art.º 24 do Decreto-Lei n.º 560/99, não se prevê aí a criação de um organismo que monitorize a qualidade do português usado na rotulagem. E, na verdade, tanto quanto sei, não existe atualmente uma entidade que avalie, do ponto de vista linguístico, a rotulagem praticada em Portugal.

Pergunta:

Obrigado pelo vosso mui útil site.

Gostaria de ver esclarecido um tema que me é caro por via da religião e do seu estudo. As palavras: ruah e nepesh, psiké etc. que possam corresponder a ar, movimento, espírito, vida, ânimo, alma e animal; donde se efectua a divisão conceptual entre alma e espírito e entre estes e os significados etimológicos literais (ar/vida/movimento, etc.)?

Quais as diferenças conceptuais entre alma e espírito?

Poder-se-ia considerar aqui a tese de polissemia, por «empréstimos internos» ou «extensões semânticas»?

Estas questões vêm a propósito de um debate forístico.

Resposta:

A pergunta diz respeito a palavras que têm tido largo uso na religião e na filosofia, o que deixa calcular que a sua dimensão enciclopédica excede grandemente a sua semântica. Quando se pede que se defina a «divisão conceptual», a resposta terá de ser necessariamente de âmbito filosófico e não linguístico, que é o domínio preferencial da atividade do Ciberdúvidas.

Assim, apoiando-me no Dicionário Houaiss, vou apenas citar os aspetos etimológicos dos vocábulos alma e espírito, os quais podem de fato estar relacionados com o uso metafórico de palavras que significaram, em dada fase histórica, «ar», «movimento», «vida». A palavra ânimo também será referida.

Alma e ânimo

Segundo o Dicionário Houaiss, a palavra alma tem origem no «lat[im] anĭma, ae, "sopro, ar; alento, o princípio da vida; a alma, por oposição ao corpo", segundo [Antenor] Nasc[entes], através da f[orma] *alima, vulgarismo esp[anhol] ant[igo]».

No verbete correspondente ao radical anim(i/o)- lê-se ainda que se trata de:

«antepositivo, do lat[im] anĭma, ae (equiv[valente] semântico do gr[ego] psukhê), "sopro, ar", depo...

Pergunta:

Como se escreve por extenso o seguinte numeral: R$/LB 1,8363 (ou seja: um real oitenta e três centavos e sessenta e três... por libra-peso)?

Resposta:

Com base em páginas da Internet, verifico que a prática mais corrente é escrever «décimos de milésimo de real» em referência a quatro casas decimais. Sendo assim, recomendo:

R$ 1,8363 = «um real e oito mil trezentos e sessenta e três décimos de milésimo de real».

Quanto à sequência R$/LB 1,8363, acho mais adequado deslocar a barra e a sigla LB para a direita da expressão numérica — R$ 1,8363/LB —, de modo a indicar que o valor de R$ 1,8363 corresponde a cada LB.1 Mas se no Brasil está enraizado o hábito de registar a expressão da maneira apresentada pelo consulente — situação que não pude confirmar —, não tenho outra hipótese senão aceitar esse uso.

1 O consulente usa LB como símbolo de libra-peso («unidade de força utilizada no sistema inglês de pesos e medidas, equivalente a 4,44822 newtons», Dicionário Houaiss). Observe-se, no entanto, que lb, com letras minúsculas, é o símbolo da libra («unidade de massa utilizada no sistema inglês de pesos e medidas equivalente a 0,4535923 quilogramas», Dicionário Houaiss). Para a libra-peso, encontro o símbolo Lb, com maiúscula e minúscula (informação colhida numa página da Internet sobre a conversão de unidades de medida).

Pergunta:

Ultimamente, em meu trabalho de revisão de texto, venho me deparando com um tipo de construção que me causa dúvida: a concordância do verbo pronominal na oração subordinada. Levo em conta a regra de que, pelo menos para verbos não pronominais, esse tipo de concordância é facultativa quando o sujeito da segunda oração já for referenciado na primeira e o verbo estiver no infinitivo pessoal (ex.: «O professor ajudou as crianças a entender a lição»/«O professor ajudou as crianças a entenderem a lição»).

No entanto, a dúvida me ocorre quando o verbo da oração subordinada é um verbo pronominal. Nesse caso, é obrigatória a conjugação em número? E a presença do pronome átono? A fim de elucidar minha pergunta, deixo três frases que exemplificam as alternativas para minha questão:

1. «O garçom nos ajudou a sentar.»

2. «O garçom nos ajudou a nos sentar.»

3. «O garçom nos ajudou a nos sentarmos.»

Resposta:

Quando uma oração não finita tem um verbo reflexo ou com se inerente e o seu sujeito é realizado como complemento direto da frase matriz, esse pronome reflexo pode ser omitido: «o garçom nos ajudou/ajudou-nos a sentar». Tal não impede, porém, que as outras duas frases estejam também corretas.

Evanildo Bechara, na sua Moderna Gramática Portuguesa (Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2002, pág. 180), descreve esta possibilidade com verbos causativos (nos quais podemos incluir ajudar) e percetivos:

«Em construções do tipo fi-lo sentar-se (e também com os verbos deixar, mandar, ver, ouvir e sinônimos), isto é, em que depois destes verbos com pronome objetivo se segue o infinitivo de verbo reflexivo, pode-se deixar claro este último pronome ou omiti-lo: fi-lo sentar

Pergunta:

Fui um dos primeiros a utilizar as diversas funcionalidades da Internet em Portugal, quando ainda muito pouca gente sequer sabia o que isso significava, e desde o início os meus professores da área de informática, já lá vão mais de 20 anos, afirmavam que o browser Mosaic (navegador) permitia a utilização dos motores de pesquisa tais como o Excite, e daí em diante tenho sempre utilizado o termo «motor de pesquisa» e sempre que alguém utiliza o termo «motor de busca» tento alertar para o facto de no português de Portugal esse termo ser incorrecto; no Brasil e em Espanha, eles, sim, utilizam esse termo, nós aqui, na Europa, não. Inclusivamente tenho falado com várias pessoas da comunicação social e também aos mais jovens e às pessoas de outras áreas e tento chamar a atenção para que ninguém faz buscas na Net, faz, sim, pesquisas.

Qualquer utilizador, quando procura algo na Net, o que faz é uma pesquisa, mesmo que saiba onde e o que procura.

Aliás, o Google utiliza o termo «motor de pesquisa», mas o Sapo utiliza incorrectamente o termo «motor de busca», será influência do Brasil ou de Espanha?

A minha questão é a seguinte: falando em termos de informática, o termo mais correcto a utilizar é «motor de pesquisa»?

Resposta:

Eu não seria assim tão perentório acerca da incorreção do uso de «motor de busca», até porque, se se usa entre falantes brasileiros,1 é porque a expressão pertence à língua portuguesa. De qualquer modo, é verdade que, na história recente do português europeu, se usou mais «motor de pesquisa» do que «motor de busca». Pelo menos, é o que sugere a consulta do Corpus do Português (Mark Davies e Michael Ferreira), onde «motor de pesquisa» ocorre mais vezes (7) do que «motor de busca (2) — apesar de as ocorrências terem todas origem na mesma fonte, o semanário português Expresso.

Além disso, deve reconhecer-se que a opção por «motor de pesquisa» se revela mais coerente com o uso do verbo pesquisar no contexto da navegação na Internet, o qual significa muitas vezes o mesmo que «usar o motor de pesquisa». Resta-me acrescentar que é mais provável que a expressão «motor de busca» tenha sido introduzida na variedade portuguesa por contacto com o português brasileiro.

1 Segundo o consultor Luciano Eduardo de Oliveira (agradeço-lhe a informação), a pesquisa  de páginas brasileiras por meio do Google indica que «motor de busca» tem mais ocorrências (4 100 000 resultados) do que «motor de pesquisa» (1 350 000), muito embora no "site" da