Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria que me respondessem a uma dúvida.

Qual a função sintáctica exercida pela expressão «com os adeptos bracarenses» na frase «A Polícia foi injusta com os adeptos bracarenses»?

Obrigada.

Resposta:

Na terminologia tradicional, consubstanciada na Nomenclatura Gramatical Portuguesa de 1967, diz-se que se trata de um complemento circunstancial, embora depois a classificação tenha alguma dificuldade em dar uma definição estável do tipo de complemento circunstancial (detrimental?).

À luz do Dicionário Terminológico, «com os adeptos bracarenses» é um complemento do adjectivo injusto («injusto com» ou «injusto para com»).

Pergunta:

Como fazer transcrição fonética das palavras da língua portuguesa?

Resposta:

Deve empregar os símbolos do Alfabeto Fonético Internacional que geralmente se usam na descrição fonológica e fonética do português. São eles:

1 – Vogais

orais: [a], [ɛ], [ɐ], [e], [ɨ], [i], [ɔ], [o], [u] 

nasais: [ã], [ẽ], [õ], [ĩ], [ũ]

2 – Consoantes

[p], [t], [k], [b], [d], [g], [f], [s], [ʃ], [v], [z], [Ʒ], [ʎ], [ɲ], [l], [n], [m], [ɾ], [R] 1

 

Existem variantes contextuais destes segmentos (ver resposta O Alfabeto Fonético Internacional e o português).

Para indicar o acento tónico, usa-se o sinal ˈ, precedendo a sílaba tó|nica: casado [kɐˈzadu].2

1 O símbolo [R] representa uma consoante fricativa velar sonora, mas é também possível a articulação apical, que se representa com [r]: carro [ˈkaRu], [ˈkaru].

2 O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa opta por colocar um acento agudo sobre a vogal que é núcleo de sílaba tónica: carro [káRu].

N. E. – Sobre o Alfabeto Fonético Internacional (AFI) – também conhecido pela sua denominação em inglês, International Phonetic Alphabet (IPA) –, consultar o capítulo  "Convenções e Transcrição Fonética – o Alfabeto Fonético Internacional" de

Pergunta:

Na frase «O pastor tratou dos camelos quando estavam no deserto», «quando estavam no deserto» é uma oração subordinada temporal. Isto é função sintáctica? Ou será que a função é complemento circunstancial de tempo?

Resposta:

Afirmar que «quando estavam no deserto» constitui uma oração subordinada adverbial temporal é o mesmo que classificar uma oração quanto ao tipo de articulação estabelecida com a oração de que depende. Se quisermos referir-nos à sua função sintáctica, diremos que se trata de um complemento circunstancial (terminologia antigamente usada em Portugal), um adjunto adverbial (terminologia gramatical do Brasil) ou um modificador de predicado (nova terminologia a aplicar em Portugal; ver Dicionário Terminológico).

Pergunta:

Examine-se a seguinte frase:

«Confrontado com a verdade, o coronel finalmente se deu a conhecer.»

Peço a gentileza de que seja feita a análise sintática da oração «o coronel finalmente se deu a conhecer».

[...] [P]ergunto ainda se a expressão «deu a conhecer» em «Ele nos deu a conhecer o objeto da discussão» é uma locução verbal? Se não, como se analisariam sintaticamente os termos oracionais «nos» e «a conhecer»?

Obrigado.

Resposta:

Há, pelo menos, duas possibilidades de análise:

1. O Dicionário de Usos do Português do Brasil, de Francisco S. Borba (São Paulo, Editora Ática, 2002), regista como subentradas de dar, classificando-as como locuções, as expressões dar a conhecer, «revelar», e dar a entender, «insinuar», o que significa que se comportam como um todo, como expressões fixas. Nesse caso, a análise sintáctica considerará que, por exemplo, dar a conhecer é uma expressão verbal que, globalmente, desempenha determinada função sintáctica, ou seja, considerando os exemplos apresentados pelo consulente:

1. «O coronel finalmente se deu a conhecer»1 

sujeito: «o coronel»

predicado: «finalmente se deu a conhecer»

adjunto adverbial ou modificador: «finalmente»

objecto directo: «se» (reflexo)

 

2. «Ele nos deu a conhecer o objecto da discussão.» 

sujeito: «ele» 

predicado: «nos deu a conhecer o objecto da discussão.» 

objecto indirecto: «nos» 

objecto directo: «o objeto de dicussão»

 

2. Uma alternativa é encarar a construção dar a + infinitivo como integrando uma estrutura oracional em que

Pergunta:

Durante as transmissões futebolísticas através da televisão, vêem-se nos estádios faixas e cartazes com expressões como estas: «É nóis na fita», «Filma nóis Galvão», «Filma eu» e semelhantes... Como vê o Ciberdúvidas tais "manifestações"? Olho para isso com um misto de preocupação e desprazer, pois creio que a língua não deveria ter chegado a semelhante estado de degeneração!

Muito grato!

Resposta:

Do ponto de vista normativo, trata-se de formas inaceitáveis. Numa perspectiva descritiva, são exemplos de variantes marginais da língua, nas suas modalidades brasileiras.

Gostaria também de comentar aquilo que o consulente chama «estado de degeneração», porque é pertinente saber o que se quer dizer por degeneração quando se fala de língua. A descrição do uso linguístico envolve necessariamente o confronto com expressões e estruturas não normativas. As frases em questão são reflexo directo de uma maneira de falar popular, que se identifica com o ambiente dos estádios de futebol, desporto de multidões. A televisão, acabando por difundir e ampliar essas manifestações, pode levar muitos falantes menos escolarizados — entre eles os que ainda frequentam a escolaridade obrigatória — a crerem que essas formas e construções são aceitáveis. Penso que essas formas só serão interpretadas literalmente se na escola e nas famílias não houver o cuidado de informar os mais jovens sobre o carácter dialectal de tais produções. Quanto a mim, trata-se de uma intervenção que visa desenvolver a cultura linguística de cada falante, dando-lhe os meios para saber avaliar a relação das formas linguísticas com o contexto sociocultural em que elas ocorrem.

Mas também considero que condenar liminarmente o que é sinal de variação do português do Brasil pode equivaler a ignorar neuroticamente a realidade de uma língua num determinado território e contexto social: a forma escrita "nóis" não é normativa, mas refle{#c|}te uma realização fonética generalizada na pronúncia do Brasil, mesmo entre as classes cultas; e estruturas normativamente inaceitáveis como «filma nóis» e «filma eu» relevam de certas especificidades históricas do português do Brasil. Convém acrescentar que, no português europeu, formas e construções não normativas como "voceses", "pa" em vez de para, "le" em vez...