Edite Prada - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Edite Prada
Edite Prada
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Edite Prada é consultora do Ciberdúvidas. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português/Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; mestrado interdisciplinar em Estudos Portugueses, defendido na Universidade Aberta de Lisboa. Autora de A Produção do Contraste no Português Europeu.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Devemos considerar a frase «Ó mãe, não queres vir comigo ao centro comercial?» de polaridade afirmativa, ou negativa [ver o Dicionário Terminológico, para apoio do ensino da gramática nas escolas básicas e secundárias de Portugal]?

Resposta:

Tendo em conta o Dicionário Terminológico, o que atribui polaridade negativa (ver Textos Relacionados) é a presença do advérbio negativo e não, necessariamente, o sentido que um dado contexto atribui a uma frase. Assim, a frase em apreço tem polaridade negativa.

O problema que se coloca, em contexto pedagógico, é saber se os alunos entendem e distinguem a classificação gramatical, digamos assim, do sentido que a frase veicula. Aí, o cuidado a haver prende-se com o trabalho a desenvolver com os alunos, eventualmente dependente do nível de análise metalinguística que eles estejam em condições de realizar.

Só o conhecimento concreto de uma turma pode ajudar a decidir se um determinado exemplo, por muito válido que seja, é oportuno e adequado.

Pergunta:

O adjetivo infantil é qualificativo, ou relacional?

Resposta:

Uma das características do adjetivo relacional é que ele, geralmente, é denominal, ou seja, deriva, por sufixação, de um nome. Além disso, raramente aceita graduação e também raramente pode ocorrer em posição predicativa.

Infantil chegou até nós do latim infantile. Permite flexão em grau («O João é muito infantil») e permite, como se vê no exemplo dado, posição predicativa.

Não me parece que tenhamos argumentos para o considerar relacional.

Pergunta:

A frase «Para de comer as nossas alfaces!» é imperativa. Contudo, a dúvida surge na polaridade, uma vez que não tem as palavras-chave de uma frase negativa; daí considerarmos a frase com polaridade afirmativa. Contudo, o sentido da frase remete-nos para uma frase com polaridade negativa, pois se substituirmos pela palavra não estamos a negar: «Não comas mais as nossas alfaces!»

Qual o tipo de polaridade mais correto?

Resposta:

Uma das vantagens das línguas naturais, neste caso, da portuguesa, é que elas nos oferecem diversas formas de dizer a mesma coisa. Todavia, ao optarmos por uma determinada estrutura na enunciação, estamos condicionados a analisar essa estrutura, e não aquelas que a podem substituir.

Pensemos, por exemplo, na frase irónica «Estás bonito, estás…», que, normalmente, tem um sentido contrário e pode não remeter para o aspeto exterior de um dado indivíduo…

Na situação em apreço, se a frase é «Para de comer as nossas alfaces», a frase é afirmativa, e podemos, mesmo, construí-la com uma polaridade negativa: «Não pares de comer as nossas alfaces.»
Se optássemos por fazer passar a mensagem através de outro verbo, como em «Não comas mais as nossas alfaces», estaríamos perante uma frase de polaridade negativa.

Ambas as frases estão certas, apesar de terem polaridade distinta e veicularem um sentido muito próximo.

Pergunta:

No apoio a um aluno, surgiram-me duas dúvidas relativamente à análise sintática de dois elementos de uma frase. Esta é a seguinte:

«(...) o mano Guanes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha de Retortilho (...)»

O primeiro caso prende-se com o elemento entre vírgulas: aposto (acresce uma informação sobre o sujeito), ou complemento circunstancial de causa [modificador de grupo verbal pela nova terminologia — devia trotar (ele)]? Porquê?

O segundo caso está no verbo «trotar (para a vila vizinha de Retortilho)». Será um complexo verbal (em que «trotar» surge como verbo intransitivo)? Ou será como complemento direto de «devia», juntamente com o resto da frase «para a vila de Retortilho», introduzindo o verbo «trotar» uma oração substantiva integrante?

Gostaria de ter a vossa opinião.

Obrigado pelo vosso belo trabalho.

Resposta:

1 – «como mais leve»

A questão que apresenta é pertinente, ainda que não de resposta simples, ou, mesmo, única… Se analisarmos o que se diz acerca do modificador apositivo do nome, veremos que ele é apresentado, maioritariamente, como podendo ser:

a) um grupo nominal — «D. Afonso Henriques, o Conquistador, foi o primeiro rei de Portugal.»
b) um grupo adjetival — «O Joaquim, jovem e trabalhador, tem tido sucesso na vida.»
c) um grupo preposicional — «A investigação, de valor incontestável, tem o apoio da Gulbenkian.»
d) uma oração subordinada adjetiva relativa explicativa — «O Joaquim, que é jovem e trabalhador, tem tido sucesso na vida.»

Evanildo Bechara, porém, na sua Moderna Gramática Portuguesa, considera que o aposto pode ter dois valores centrais:

a) Especificativo, em que um nome, muitas vezes nome próprio, complementa a informação de outro ocorrendo em adjacência, sem qualquer tipo de separação diacrítica: «o rio Amazonas»;
b) Explicativo, que contém informação acrescida sobre o nome e que ocorre entre vírgulas. Este aposto pode veicular valores secundários dos quais o autor destaca três:

1 – Enumerativo: a explicação consiste num desdobramento enumerativo que segue palavras como tudo, nada, ninguém, etc.: «Tudo — alegrias, tristezas, preocupações — ficava estampado logo no seu rosto», p. 457.
2 – Distributivo: «Machado de Assis e Gonçalves Dias são os meus escritores preferidos, aquele na prosa, este na poesia.»
3 – Circunstancial (comparação, tempo, causa, etc.). Pode, ou não, ser introduzido por palavra indutora do sentido: «As estrelas, como grandes ol...

Pergunta:

Nesta entrada respondida pela Edite Prada (que agradeço a sua muito boa explicação e introdução à obra!) lia-se que o nome da aldeia do livro «assenta nas características inusitadas da aldeia. Se, cantando, a garganta pode secar, e beber poder ser considerado uma recompensa, chorando tal não acontece, e beber torna-se desnecessário». Permitam-me discordar. Acho que beber não se tornará assim tão desnecessário, à partida (sinto-me agora como quando estava no secundário, quando me entediava com todas as significações que se dava a todas a vírgulas de Os Lusíadas e outras obras. Mas agora sou eu que estou a "alinhar" neste papel).

Discordo desta última parte e pergunto-vos:

– Não terá esta alteração somente o propósito de assentar o provérbio nas características da aldeia? Porque, no mesmo tom humorístico... sarcástico... hum..., até, se calhar, irónico da obra, se, cantando, a garganta pode secar, e beber pode ser considerado uma recompensa; chorando, uma pessoa desidrata e, bebendo, compensa a perda de líquidos, "por isso, chorem, chorem, seus choramingões, e continuem na vossa melancolia, que, bebendo, isso passa". Ou, até, se beberem álcool, seria mais um "chorem, chorem, que depois a pinga vos animará".

Não seria mais esta a ideia?

Resposta:

A literatura é, sabemo-lo todos, um mundo quase infinito de significação, que se vai produzindo no diálogo, individual, mas sem perder a carga coletiva do tempo-espaço quer da produção, quer da receção de uma dada obra. Perante esta realidade, quem poderá dizer qual a leitura, ou interpretação, mais adequada de uma determinada situação? Talvez, recorrendo ao aviso inscrito no muro de Chora-Que-Logo-Bebes, «quem não andar espantado de existir».

No momento em que respondi, e partindo da análise que expus, sintetizei da forma que cita a interpretação que fiz relativamente à alteração do provérbio «Canta, que logo bebes», transformado, na obra, em topónimo com alteração do verbo inicial, sendo o nome da aldeia Chora-Que-Logo-Bebes.

Num local onde a humidade é tanta, que as pessoas ganham verdete, pareceu-me na altura, e parece-me hoje, que beber não será um prémio de grande monta. A meu ver, esse prémio — facultar bebida aos chorões — é mais um elemento que ilustraria o desconcerto que aquela comunidade é. Até porque eles não param de chorar… E, todavia, essa interpretação é possível. A prova é que o consulente a formula!

Eu diria que a sua interpretação não é a ideia, mas é, tal como a minha, mais uma ideia. Porque, em interpretação de obras literárias como a que está em análise, se alguma coisa é proibida, é o uso do advérbio somente. Com ou sem realce. Num grito, ou num sussurro!