Miguel Faria de Bastos - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Miguel Faria de Bastos
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Miguel Faria de Bastos  é advogado  (Angola/Portugal),  estudioso de Interlinguística (v.g., Esperanto e Esperantologia).

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Li, recentemente, uma resposta de um colaborador v/, o Prof. Doutor Rui Pinto Duarte, a propósito do (não) uso do adjetivo colendo como forma de tratamento de juízes de tribunais superiores em Portugal (em comentário, de certo modo, contrariado pelo do Dr. Miguel Faria de Bastos). Permito-me, todavia, chamar a atenção para o facto de o adjetivo em questão, num nível de linguagem erudito, não ser desconhecido, nem mesmo, como é referido na resposta do v/ ilustre colaborador, em peças processuais (cf., por exemplo aqui e  aqui) da Justiça dos III, VI, IX e X Governos pós-1974) intitulado "O contrato de transporte marítimo.O seu espaço próprio em confronto com o dos contratos de venda e de abertura de crédito documentário", inserto nos Estudos sobre o novo Direito marítimo. Realidades internacionais e situação portuguesa, Coimbra Ed., Coimbra, 1999, p. 156:

«O colendo Supremo Tribunal não captou a essência do problema - que, diga-se por amor à verdade, as partes não terão equacionado com límp...

Resposta:

Mantenho a minha resposta de 22.12.2005. 

Estatisticamente, o termo colendo usa-se nos tribunais com muito menos frequência do que o  venerando, tanto em Portugal como em Angola.  Diferente é o caso do Brasil, onde esta forma de tratamento é mais corrente.

Pessoalmente, como advogado, pelas razões expostas nessa resposta, adaptando agora o texto segundo o Acordo Ortográfico de 1990, em vez do Venerando, que tresanda a bafio e bajulação servil, prefiro o  Colendo, que uso quase invariavelmente (como alternativa de Exmo. Senhor) nas peças processuais dirigidas aos tribunais superiores, quer em Angola, quer em Portugal, e ao longo de décadas venho aconselhando os advogados meus estagiários (mais de  50), em ambos os países, a usarem o mesmo termo.

Pergunta:

Numa aula com formandos de um curso de magistrados em Timor-Leste, surgiu a dúvida sobre a diferença nas seguintes palavras: estabelecimento prisional, prisão, cárcere e penitenciária. Em dicionários são consideradas sinónimos, mas ao nível jurídico e histórico não é bem assim. Gostaria, se possível, que me esclarecessem.

Obrigada.

Resposta:

No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, e no Dicionário Enciclopédico de Língua Portuguesa, entre outros, encontram-se definições* que não coincidem com as que decorrem dos diplomas legais vigentes e atinentes à doutrina conhecidos em Portugal.

Tenho como apropriadas as definições seguintes:

Estabelecimento prisional é uma unidade estrutural-funcional instalada em edificação, dirigida por polícia prisional e respetiva cadeia de comando do Estado, onde cidadãos são colocados e mantidos privados de liberdade, seja por força de ordem de prisão preventiva, em fase de pré-julgamento, seja em cumprimento de pena de prisão a que foram condenados por sentença dum tribunal criminal;

♦  Penitenciária é um estabelecimento prisional onde cidadãos cumprem penas de prisão a que foram condenados por sentença dum tribunal criminal;

♦ Cárcere é uma cela individual ou coletiva dentro dum estabelecimento prisional. 

Cárcere privado é a privação dolosa da liberdade de um cidadão por outro fora de estabelecimento prisional por iniciativa privada, além de certo número de horas – constitui crime punível.

♦ Prisão é qualquer uma destas coisas. 

 

Pergunta:

Em francês existem as palavras régulation e réglementation. Mas não vejo tradução exata para as duas em português...

Por exemplo, tendo em conta a falta de regulação e a falta de regulamentação, aceita-se que se use os termos  «a-regulação» e «a-regulamentação», respetivamente?

No primeiro caso, pretende-se dizer que o fluxo, o caudal, não foi regulado. No segundo, que não se dotou o sistema de regras, de leis.

Será que a língua portuguesa não é tão subtil como a francesa? Esses termos  deviam ficarentre aspas? Seria obrigatória uma nota em rodapé explicativa desses termos? (...)

N. E. – Excecionalmente, não se indica o nome do consulente, que, embora tenha enviado dados de identificação, pediu confidencialidade sobre os mesmos aos editores do Ciberdúvidas.

Resposta:

O termo regulamentação respeita especificamente a regras regulamentares; o termo regulação alude a regras em geral.

As “regras” – por natureza, gerais e abstratas  chamam-se “normas” quando estabelecem um regime aplicável  a pessoas (físicas ou fictas) – e podem ser jurídicas ou não (v. g., éticas, sociais, costumeiras).

Um regulamento é um todo sistémico de normas jurídicas de nível regulamentar. As normas jurídicas podem, basicamente, dividir-se em dois níveis – o legislativo e o regulamentar (este secundário em relação ao anterior). Aprofundando, pode dizer-se, por sua vez, que o nível jusconstitucional é o nível mais elevado na hierarquia das leis nacionais, tal como o internacional ou juspactício (tratados, declarações universais ou internacionais ratificadas) é um nível jusnormativo supranacional.

Consentaneamente, um diploma legislativo (lei ou decreto-lei) compõe-se de normas legais; um diploma regulamentar (regulamento, estatuto interno, circular genérica) compõe-se de normas regulamentares.

Há regras que podem não ser normas e não ser jurídicas (v. g., urbanísticas, paisagísticas, hígicas1, mercadológicas, hídricas).

A falta ou défice de regulação pode ter que ver com legislação, regulamentação ou regulação não jurídica; a falta ou défice de regulamentação  tem que ver sempre com regulamento ou regulamentos.

Se a falta ou défice de regras no tocante concretamente ao fluxo hídrico respeita a regulamento ou regulamentos, deve falar-se em regulamentação; se respeita, indistintamente ou conjuntamente, a regras em geral, sejam elas legislativas, regulamenta...

As várias conceptualizações do termo <i>erro</i>

Réplica de Miguel Faria de Bastos à divergência de Gonçalo Neves expressa no artigo A tradução do inglês error por erro – que contestava o que, sobre essa passagem, o autor escrevera anteriormente no texto Inverdade e mentira + erro e desacerto, na linguagem jurídica.

Pergunta:

Sobretudo em documentos oficiais (nomeadamente o Diário da República), é frequente o uso tanto de procedendo como de precedendo, por regra no contexto «Fulano é nomeado, precedendo/procedendo concurso, para [um dado cargo/função]». Qual é a forma correta? Ou são ambas corretas? E, se forem ambas corretas, significam o mesmo ou significam coisas diferentes? À partida, dá-me a ideia que «precedendo concurso» deveria querer dizer «antes de ocorrer o concurso» e «procedendo concurso» deveria querer dizer «na sequência do concurso», será isso?

Resposta:

Os  verbos preceder e proceder, no que para o caso interessa, têm significados e alcances diferentes. Preceder significa «ocorrer anteriormente»; proceder significa «ter provimento» ou «ter ganho de causa».

Assim, é correto dizer-se, em linguagem judiciária, que um recurso foi julgado procedente (teve provimento), tal como é correto dizer-se, no âmbito da Administração Pública, que um concurso precederá a nomeação.

No caso posto, pois, a expressão correta é «precedendo concurso» (o concurso é o sujeito da oração gerundial) – não  «procedendo concurso».

A semelhança gráfica destes dois verbos dá, não raramente, causa a erros de revisão do texto dos D.R. publicados pela Imprensa Nacional.