Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2. Com pós-graduação em Edição de Texto, trabalha na área da revisão de texto. Exerce funções como leitora no ISCTE.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Há alguma diferença entre "fazer de tudo" e "fazer tudo"?

Obrigado pela ajuda.

Resposta:

As expressões «fazer de tudo» e «fazer tudo» têm significados ligeiramente diferentes, pelo menos, no português de Portugal1.

Considerem-se os exemplos:

1. «Vou fazer de tudo para passar no exame»

2. «Vou fazer tudo o que me pediram»

Em 1. o verbo fazer tem o sentido de «fazer o que estiver ao seu alcance, com disposição em aguentar tudo e todas as consequências, para chegar a um fim». Já em 2. o verbo fazer tem o sentido de «realizar» a totalidade das coisas que foram pedidas. 

 

1 No entanto, o Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático (Porto,Livraria Chardrone Lello & Irmão – Editores), de Énio Ramalho, regista a locução de tudo como o mesmo que tudo. Não obstante, o exemplo dado pela obra citada – «neste estabelecimento há de tudo» – marca um valor partitivo, que alude à relação com uma diversidade de objetos e produtos, subentendido que se afigura ausente em «neste estabelecimento há tudo», frase supostamente sinónima. Este pequeno contraste também é conhecido no Brasil (comunicação pessoal do consultor Luciano Eduardo de Oliveira).

Pergunta:

Dicionário Online de Português mostra que o verbo convir, em todas as suas acepções, é transitivo indireto, e, como exemplo na acepção de «demonstrar concordância ou entrar num acordo», cita a frase: «Convenho que estejas certo.»

Minha dúvida é: visto que ele é transitivo indireto, a frase correta não deveria ser obrigatoriamente «convenho EM que estejas certo»?

Obrigado!

Resposta:

O verbo convir é um verbo transitivo indireto que, na aceção de «demonstrar concordância ou entrar num acordo com; concordar, acordar», aceita a omissão da preposição em, como refere o Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses (2007, pág. 208): na construção em que temos sujeito + verbo + grupo preposicional (em+F1), a preposição em pode ser omitida. Deste modo, o exemplo apresentado pelo Dicionário Online de Português está correto  «convenho que estejas certo» , assim como o exemplo apresentado pelo consulente – «convenho em que estejas certo».

Considere-se ainda a possibilidade do uso com uma oração não finita, em que é igualmente aceite a omissão da preposição em: «Eles convieram [em] viajar para Paris de carro».

 

1 Por F entende-se oração finita e não finita.

Pergunta:

Abísmico – esta palavra existe na língua portuguesa?

Resposta:

A palavra abísmico  encontra-se atestada, pelo menos, em dois dicionários. O Grande Dicionário da Língua Portuguesa de José Pedro Machado regista-a com o significado de «semelhante a abismo»; e, no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, encontra-se abísmico entre as palavras formadas por abism-, e, a par deste adjetivo, inclui-se a forma sinónima abíssico, que tem entrada própria no dicionário e é definida como «pertencente ao abismo, relativo aos sedimentos que se teriam formado no fundo do primeiro mar ou abismo».

Sobre a relação etimológica entre os radicais abism- e abiss-, lê-se ainda no Dicionário Houaiss (s. v. abism-):

«antepositivo, do latim abyssus, i (italiano abisso, francês antigo, provençal, catalão abi[s]), do gr. ábussos,on,on 'sem fundo, de uma profundidade imensa', substantivo no feminino hē ábussos 'abismo sem fundo'; passou por intermédio da Igreja às línguas românicas sob a forma culta e a de um dobrete popular *abismus (francês abîme, provençal, catalão abisme, espanhol [> logudorês abismu], português abismo); a cognação portuguesa inclui o radical popular abism- e o culto abiss-, a saber: abismado, abismador, abismal, abismamento, abismante, abismar, abismático, abismense, abísmico, abismo, abismoso; abissal, abissar, abíss...

Pergunta:

Como se pronuncia remoça e remoço, em «ele remoça» e «eu remoço», do verbo remoçar, que significa rejuvenescer? Pronuncia-se com "o" aberto ou fechado? Diz-se ele "remóça" ou ele "remôça"? Diz-se eu "remóço" ou eu "remôço"? A pronúncia, claro, eu sei que a conjugação não leva acentos.

Grato pela atenção dispensada.

Resposta:

O verbo remoçar, atestado com o significado de «tornar mais moço, rejuvenescer; dar aparência de moço; atribuir menos idade a; e readquir força, vigor» (Dicionário Houaiss), pronuncia-se com o aberto –símbolo fonético [ɔ] – nas 1.ª, 2.ª e 3.ª pessoas do singular e na 3.ª pessoa do plural do presente do indicativo e do presente do conjuntivo: remoço, remoças, remoça, remoçam; remoce, remoces, remoce, remocem.

À semelhança deste verbo, encontramos outros, como adoçar, reforçar ou almoçar.

A título de curiosidade, refira-se que os substantivos relacionados com reforçaralmoçar têm a mesma grafia que a primeira pessoa do singular do presente do indicativo destes verbos, mas pronunciam-se com o tónico fechado: «o ref[ô]rço» e «o alm[ô]ço». O mesmo acontece com os nomes e adjetivos moço e moça, que dão o radical para a formação de remoçar, embora ambos tenham o fechado na sílaba tónica mo-.

Pergunta:

Na expressão «rumo a Canaã» (em referência à Canaã bíblica), ocorre ou não crase?

Para mim, não há, porque «quem vai a Canaã e volta de Canaã – acento para quê?», mas, em diversos textos acadêmicos e jornalísticos confiáveis, vi o contrário, o que abalou minha convicção.

Grato.

Resposta:

Antes do nome próprio Canaã, não se emprega artigo definido, e, portanto, não pode ocorrer a contração à (a chamada crase no Brasil). Deve, portanto, escrever-se «vai a Canaã e volta de Canaã», sempre sem artigo definido.

Observe-se que não há normas muito rígidas sobre a colocação ou omissão de artigos antes de topónimos, em português. Geralmente, os nomes de continentes, países e regiões do género feminino são acompanhados de artigo definido: «a Polónia», «a Pomerânia», «a Síria», «a Palestina», «a Indochina», «a Indonésia», «a Sibéria», «a Micronésia», etc. Muitos nomes com o mesmo tipo de referência têm também artigo definido: «o Mónaco», «o Egito», «o Irão», «o Japão», «o Brasil», «o