DÚVIDAS

Chamar com regência

Como autor da resposta dada ao espectador, cujo texto a seguir transcrevo  —  e como interessado no correcto uso da nossa língua  —, podem esclarecer-me sobre os comentários do espectador, ou seja, ele está totalmente correcto, ou também merece ser corrigido?

Grato pela atenção.

1. «Caro Sr. Miguel Fernandes,

[...] Permita-nos apenas referir que é correcto utilizar «chamar de» (exemplos: «Ele é chamado de intelectual/Ele chamou-me de mentiroso»). O verbo chamar, com o significado de qualificar, dar nome, pode ser regido pela preposição de.

Bruno Costa

Assistente de Relações Públicas»

2. «A preposição de pode de facto ser usada a seguir ao verbo chamar, tal como pode ser usada a seguir a qualquer outro verbo. A questão é a função sintáctica dessa preposição; a forma como afecta o significado da frase.

Está obviamente correcto dizer «ele chamou-o de muito longe», «ela chamou-me de repente» ou «eu chamei-te de novo». A preposição de indica que o bloco seguinte é um complemento circunstancial (de lugar, modo, etc.), que qualifica a acção descrita (e não o objecto chamado).

Ora, no caso «ele chamou-me de mentiroso», «mentiroso» não é um modo nem um lugar nem qualquer outra entidade que qualifique uma circunstância. O de (que indicaria isso mesmo) está lá a mais. A forma correcta é «ele chamou-me [nome]». Ele chamou-me Carlos, ela chamou-lhe filho, eu chamei-lhes parvos.

Suspeito que os exemplos referidos não sejam acidentais. Arrisco dizer que foram copiados do site Ciberdúvidas, no qual infelizmente se dão frequentes pontapés na língua portuguesa (às vezes em direcções contraditórias, sem qualquer espécie de referência para além da opinião pessoal dos autores), e há uma certa tendência para ignorar o facto de certas construções linguísticas, correctas em determinadas circunstâncias, estarem incorrectas noutras. A utilização da preposição de a seguir a um verbo (qualquer verbo) é uma delas.

O verbo chamar não tem propriedades especiais (pelo menos nenhuma que não seja partilhada por diversos outros verbos). Estas expressões estão correctas:

«Eu dei-lhe trabalho.»

«Eu deixei-a cansada.»

«Ele chamou-me analfabeto.»

Já estas não estão:

«Eu dei-lhe de trabalho.»

«Eu deixei-a de cansada.»

«Ele chamou-me de analfabeto.»

O que não significa que não seja perfeitamente correcto utilizar a preposição de a seguir aos mesmoS verbos, quando se quer dizer algo diferente:

«Eu dei-lhe de comer.»

«Eu deixei-a de repente.»

«Ele chamou-me de dentro de casa.»

Já agora, as coisas também não se devem «qualificar de», devem «qualificar-se como». Assim como não se devem «descrever de», devem «descrever-se como» (e «classificar-se como», etc.).

A preposição de é muitas vezes usada para "safar" frases quando o autor não conhece a forma mais correcta ou se enganou no início da construção. Por exemplo, se alguém quer dizer «ele chamou-lhe pai» mas se engana e começa por «ele chamou-o...», a seguir resta-lhe enfiar ali um de para a
frase parecer menos estranha. Esta situação é agravada pelo facto de, no Português do Brasil (que muitos portugueses consomem através das telenovelas), praticamente não se utilizar a conjugação dos verbos com -lhe, substituindo-a (incorrectamente, do ponto de vista europeu) por -o, -a, ele ou ela. E, mais uma vez, usa-se o de para disfarçar o erro (ex., «ela chamou-lhe pai» -> «ela chamou [-o / ele] de pai»).

Esta capacidade do de de servir como «preposição universal» ou «serviço de desempanagem sintáctica» pode ser considerada útil («chamou-o de pai» é menos horrível que «chamou-o pai»), mas isso não significa que esteja correcta, nem que a sua utilização não influencie o significado da frase.

Afinal, existe uma diferença entre alguém chamar-me «de Avô» (isto é, chamar-me a partir da freguesia de Avô, em Oliveira do Hospital) ou chamar-me «Avô» (isto é, referir-se a mim — ou qualificar-me — como avô).

Ou, para usar um exemplo menos peculiar, existe uma diferença entre alguém «chamar-me de baixo» (isto é, chamar-me a partir de um sítio que fica mais abaixo) e «chamar-me baixo» (qualificar-me como baixo). A preposição de não «rege o verbo chamar» quando este é «utilizado com o sentido de
qualificar». Antes pelo contrário; indica que o que se segue descreve a circunstância em que se chamou, e não o nome que se chamou.

Uma consulta a textos de autores portugueses (Eça, Camilo, Saramago, etc.) revelará uma total ausência de “chamar des”. O Eça era realmente chamado de Queiroz... porque o "de" fazia parte do nome.

Miguel Fernandes

Lisboa

Portugal»

Resposta

Sintetizando a pergunta e os textos enviados, pretende-se saber se o verbo chamar, no sentido de «atribuir um nome», «apelidar», «designar» (relativo a pessoas ou a seres personificados), pode ter um complemento regido pela preposição de, complemento esse exigido pela regência do verbo. Exemplificando: é correcta a construção «ele chamou-o de analfabeto»?

Para responder a esta pergunta, talvez seja interessante ver, em primeiro lugar, se o verbo pede complemento directo ou indirecto, de que são exemplo, respectivamente, o pronome pessoal o e o pronome pessoal lhe.

Segundo a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira ou o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de António de Morais Silva (10.ª edição, 1949-1959), nesta acepção de «atribuir um nome», «apelidar», o verbo chamar pede dois complementos, um deles preposicionado. Exemplos retirados dessas obras: «Chamou ao rapaz idiota»; «era um desses indivíduos de excepção a quem chamamos homens»; «eu sou aquele oculto e grande cabo / A quem vós outros chamais tormentório».

Outros exemplos:

(1) Ó glória de mandar (...) chamam-te ilustre, chamam-te subida. (Os Lusíadas, IV)

(2) Chamava-lhe [Maria Monforte a Afonso da Maia] o D. Fuas, o Barbatanas. (Os Maias, cap. II).

Como se pode ver, «ao rapaz», «a quem», «te», «lhe» são termos que parecem desempenhar a função de complemento indirecto: ou estão introduzidos pela preposição a ou são constituídos pelo próprio pronome pessoal, forma de complemento indirecto (me, te, lhe, nos, vos, lhes).

Epifânio da Silva Dias, na sua Sintaxe Histórica Portuguesa (1916), esclarece que o verbo chamar, no sentido de «chamar nomes a alguém», se constrói «de ordinário com a pessoa ou cousa por compl. indirecto, e o nome (ainda quando adjectivo) por compl. directo». E apresenta uma frase em que surge a oração «chama-lhe juiz injusto», em que «lhe» seria o complemento indirecto, e «juiz injusto», o complemento directo, sem preposição (como acima os termos «idiota», «homens», «tormentório», «ilustre», «subida», «o D. Fuas, o Barbatanas» ).

Daqui se conclui que o exemplo apresentado deveria ser assim construído: «Ele chamou-lhe analfabeto.»

No entanto, a construção «chamar de», esclarece o ilustre filólogo, era utilizada no português arcaico: «Que te chama de ratinhos (Gil Vicente, vol. II, 435, ap. J. Moreira, Est., 1, 138)».

Por seu lado, Vasco Botelho do Amaral, no Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (1952), defende que «não é erróneo, como se pensa, o emprego da preposição em frases como: ‘chama-se a isto Amor de Deus’, ou: ‘chamou de ilustre àquele rei’. Bons autores assim praticam». Porém, o exemplo que dá («Herculano, por exemplo, em O Bobo, pág. 59: ‘chamais ao infante rebelde....’”) abona a construção defendida por Epifânio da Silva Dias: complemento preposicionado = indirecto («ao infante») + complemento sem preposição = directo («rebelde»).

Evanildo Bechara, gramático brasileiro, na Moderna Gramática Portuguesa (2003), refere que «já é muito corrente no Brasil a construção chamar de com obj. dir., contaminada de outras, como acusar, argüir de».

Assim, embora se defenda como preferível a forma «ele chamou-lhe intelectual», não poderá dizer-se que é um erro a construção «chamar de» no sentido de «chamar nomes a alguém», presente na frase «ele foi chamado de intelectual». De referir, ainda, que as ocorrências com a construção «chamar de» normalmente têm o significado de atribuir um epíteto que não é realmente uma característica do indivíduo, como o nome, mas o juízo que alguém faz dele, de que são exemplo as frases «chamei-o de mentiroso» (abonada pelo Dicionário de Verbos Portugueses da Porto Editora, 2005) ou «o homem chamou-me de palerma» e «não gostei nada que ele me tivesse chamado de imbecil» (abonadas pelo Novo Dicionário Lello Estrutural, Estilístico e Sintáctico da Língua Portuguesa, de Énio Ramalho, 1999): não significa que o indivíduo seja realmente mentiroso, palerma ou imbecil, mas, apenas, que alguém assim o apelidou.

[Veja-se, também, a minha resposta de 15/2/2002, Como lhe chamam].

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