Como bem explicam Cunha e Cintra, em Nova Gramática do Português Contemporâneo, (2005:490): «Estar seguido de gerúndio indica uma acção durativa num momento rigoroso» e, acrescentemos nós, relativamente à primeira frase que a consulente nos apresenta, esse momento rigoroso é o momento passado que o sujeito está a descrever. Nesse mesmo momento, existe uma ação durativa: o ato de vestir.
O «momento rigoroso» parece aqui difícil de definir, porque a frase indicada (fora de um contexto) está incompleta; falta-lhe:
1) uma referência temporal (o «momento rigoroso» que se pretende descrever),
2) o objeto direto do verbo vestir.
Uma possibilidade de completar a frase seria adicionando os seguintes elementos:
a) «Eu estava vestindo o casaco quando ele telefonou.»
Agora já parece mais fácil entender a primeira asserção. Voltemos a ela, associando-a à nossa frase: no momento rigoroso em que «ele telefonou», estava a decorrer uma ação durativa — «eu estava vestindo o casaco».
Temos, portanto, dois momentos passados: o momento em que se dá o telefonema, e um outro, que já tinha começado antes do telefonema (e que não se sabe se terminou aquando do mesmo).
Partindo agora para a análise da segunda frase. Sem contexto, não há muito a dizer quanto à «ideia de passado» do particípio... Evocando, novamente, as palavras de Cunha e Cintra (2005:493): «Quando o particípio exprime apenas o estado, sem estabelecer nenhuma relação temporal, ele se confunde com o adjectivo.» E é precisamente essa a situação do particípio vestida na frase «Eu estava vestida», à semelhança de «Eu estava feliz», etc., onde a «ideia de passado» é dada pelo verbo estar, e nada tem que ver com o particípio.
Uma análise diferente terá a seguinte frase:
b) «Eu estava vestida quando ele telefonou.»
Com estes novos elementos, já é possível atribuir a «estava vestida» uma ideia de passado que, por sua vez, é anterior a «ele telefonou».
A consulente poderá perguntar: «mas, então, qual a diferença entre os exemplos a) e b)?», ao que respondemos: Em a), na mesma altura em que «ele telefonou», está já a decorrer a ação de vestir (e não se sabe se essa ação termina ou não aquando do telefonema). Em b), a ação de vestir não só tinha começado antes do momento (rigoroso) do telefonema, como já tinha terminado quando este se realizou.
Em suma, a ideia de passado em «estava vestindo» e «estava vestida» é a mesma. Não referindo aqui o tempo da enunciação, há duas referências temporais tanto em a) como em b):
i. o tempo do telefonema (passado)
ii. o tempo da ação de vestir (remetendo para um passado anterior ao passado do telefonema).
A diferença entre estas duas expressões não pode, portanto, ser explicada com base na categoria tempo, mas na categoria aspeto (ou seja, no facto de determinado evento ter ou não um fim implícito/um limite definido).
Chegamos, finalmente, ao que distingue a) de b): em a), o evento acima designado durativo não tem um término estabelecido, por outras palavras, trata-se de um evento atélico1 (sem fim) — «estava vestindo». Em b), o evento é télico, já que há referência da sua concretização plena (ato de vestir); «estava vestida» (já no momento do telefonema).
Como última nota, referimos apenas que o termo inglês present continuous, que equivale ao nosso gerúndio, dá-nos, precisamente, a ideia de continuidade...
Esperamos ter ajudado.
1 Em linguística, usa-se o termo atélico «[...] na análise gramatical a aspeto para referir uma situação que não tem um limite temporal bem definido. Em vários casos podem chamar-se atélicos verbos que descrevem situações atélicas. Os verbos olhar e cantar são exemplos de verbos atélicos, por oposição aos verbos télicos, como, por exemplo, os verbos cair e sentar, que expressam ações com um limite temporal definido. No entanto, embora a frase "o João está a cantar" descreva uma situação atélica, "o João está a cantar uma canção" descreve uma situação télica» (Dicionário de Termos Linguísticos, 2 vols., Lisboa, Edições Cosmos, 1992, disponível nas páginas da Associação de Informação Terminológica).