DÚVIDAS

O verbo ir num verso de Camões: «Vai fermosa e não segura»

No vilancete camoniano “Descalça vai para a fonte”, no verso «vai fermosa e não segura», o constituinte «fermosa e segura» é classificado como predicativo do sujeito, o que confundiu os alunos, dado que o verbo ir seleciona complemento oblíquo, como no 1.º verso: «… vai para a fonte».

Agradecia a vossa explicação, porquanto as gramáticas que consultei não foram esclarecedoras.

Resposta

Com efeito, o constituinte «fermosa e segura» pode ser considerado um caso de predicativo do sujeito selecionado.

Alguns verbos transitivos, em condições particulares, são usados num sentido existencial, o que desencadeia o aparecimento de um constituinte com a função de predicativo do sujeito. Como afirma Raposo, «[e]estes verbos têm características particulares que os aproximam dos verbos copulativos – nomeadamente o facto de se combinarem com um predicativo do sujeito obrigatório e, mais especificamente, o facto de esse predicativo poder ser um adjetivo. Contudo, não são verbos copulativos porque impõem restrições semânticas sobre o sujeito.»1

O autor acrescenta que verbos como passar (por), dar-se (por), sentir-se e viver são exemplos de verbos que se podem construir com predicativo do sujeito, como acontece em (1):

(1) «O João vive triste.»

Estes verbos ocorrem em simultâneo sem o constituinte predicativo, como acontece com o verbo viver em (2):

(2) «O João vive em Braga.»  

A mesma situação ocorre com o verbo ir, que pode construir-se com complemento oblíquo (3) ou, tendo um valor existencial, com predicativo do sujeito selecionado (4):

(3) «Ela vai à fonte.»

(4) «Ela vai fermosa e segura.»

Disponha sempre!

1. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1344.

Cf. Traduzir Camões para o português atual? + «Camões não ficou agarrado ao seu tempo. O que ele diz ainda ecoa»

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