«Vai para tua casa!» Esta frase dita a uma criança poderá significar que acabou o tempo de brincadeira e que são horas de recolher, para descansar ou para realizar outras tarefas. A mesma expressão dita a um negro significa que se acredita que há pedaços de terra, neste nosso planeta, organizados pela cor da pele. A casa para onde se manda não é a habitação, é uma lasca de terra que se situará algures abaixo do Mediterrâneo. Em vez de seguir o critério de distribuição de terra por cores, este nosso planeta também poderia ter sido organizado segundo o critério, igualmente tolo, de graus de bondade ou de QI. Teríamos, assim, tolos de um lado, inteligentes de outro, bonzinhos aqui, mauzões acolá. Mas parece que ninguém se lembrou disso.
O que é certo é que esta frase é filha da crença no conceito de raça, que, recorde-se, foi já invalidado há muito tempo, por uma razão muito simples: não existe, foi inventado pelos homens.
De origem mais ou menos obscura, a palavra raça poderá ter tido origem na palavra italiana razza, que significa «linhagem» ou «criação». A este sentido, desde há cerca de 200 anos, começou a ser acrescentado o pressuposto de que existe uma relação entre a cor da pele ou a textura do cabelo e determinados grupos humanos, que, por sua vez, foram associados a territórios geográficos. Mas a verdade deste facto vai muito além do léxico, porque este conceito serviu, sim, para autorizar o tratamento de humanos como seres inferiores, que podiam, assim, ser explorados e maltratados sem que daí adviessem consequências para os agressores. O campo lexical de raça inferior foi integrando também as palavras negro e preto, que, de nomes de cores, passaram a nomes que designam pessoas com essa cor de pele e rapidamente esse nome de cor e depois de pessoa recebeu uma carga pejorativa que se guarda na linguagem como herança perniciosa e quase inconsciente. Expressões como «lista negra», «mercado negro», «humor negro», «trabalho de preto», «vida de preto» ou «a coisa está preta» carregam um ódio, um desprezo por seres humanos que encontra justificação apenas no facto de terem uma cor diferente. E se a diferença estivesse nos pés ou nas unhas ou na barriga, como seria? É assim tão difícil aceitar a diferença como algo inerente ao homem e perceber a idiotice que é ser racista?
O que é certo é que, de vez em quando, há quem leve estas ideias ao extremo e, sem conseguir perceber a imbecilidade do seu pensamento, se acha no direito de mandar para casa alguém que é português, nascido e criado em Portugal. Onde é afinal a sua casa? Quem é esse alguém que ergue a sua arma e que acha no direito de decidir se alguém vive ou morre com base na cor da pele ou no que quer que seja?
(Áudio disponível aqui)
Cf. Dicionário de expressões (anti) racistas
Apontamento da autora no programa Páginas de Português, emitido na Antena 2, no dia 2 de agosto de 2020.