Penso que estamos perante uma situação em que uma sequência fonética que tinha uma dada estrutura sintáctica e semântica é reanalisada, alterando-se as relações estruturais iniciais. Este processo de reanálise tem alguma produtividade na mudança
linguística; por exemplo, o substantivo masculino aleijão deriva da forma feminina leijom através da reanálise da expressão «ũa leijom» como «um aleijão».
Deste modo, podemos supor que a expressão referida pelo consulente terá sido inicialmente «amanhã anda a roda», conforme se regista no Dicionário das Expressões Populares Portuguesas, de Guilherme Augusto Simões, que regista andar a roda, significando «a lotaria». Esta locução tinha provavelmente não só um valor descritivo, podendo ser parafraseada como «amanhã gira a tômbola», mas também uma função apelativa, chamando a atenção para o sorteio da lotaria.
No entanto, existe também a locução andar à roda, que está registada no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, com a acepção de «realizar sorteio de loteria». Assim como no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, que tem a seguinte abonação: «1. Girar. "Ficou com a cabeça à roda". 2. Proceder-se ao sorteio da lotaria.» Além disso, andar à roda é genericamente «girar», «rodar». Há, pois, uma grande proximidade semântica entre «andar a roda» e «andar à roda».
Por outro lado, repare-se que «anda a roda» se pronuncia como «anda à roda», [andáRóda]. Na verdade, este aspecto é válido para o Brasil, mas também o é para Portugal, visto que, neste país, o [â] fechado da sílaba final de anda e o [â] fechado correspondente ao artigo a se contraem num único som, um [á] aberto, quando se diz «anda a roda». Sendo assim, os falantes podem interpretar «anda a roda», isto é, a «a tômbola gira», como «anda à roda», depreendendo pelo contexto que é a tômbola que «anda à roda».