1. A análise que recorra à TLEBS não é muito diferente da tradicional:
«Lembro-me de que, há anos, em Campo de Ourique, Gomes Freire prejudicou muito a meu irmão.»
«Lembro-me de»: frase subordinante
«de que, há anos, em Campo de Ourique, Gomes Freire prejudicou muito a meu irmão»: frase oração subordinada substantiva completiva
Explicarei o estatuto da expressão «há anos» mais adiante
2. Análise sintáctica das orações (ou frases)
2.1. «Lembro-me de que…»
Sujeito nulo subentendido: «eu»
Predicado: «lembro-me de que…»
Complemento preposicional: constituído pela preposição de e uma oração subordinada substantiva completiva.
2.2. «que, há anos, em Campo de Ourique, Gomes Freire prejudicou muito a meu irmão»
Conjunção subordinativa completiva: «que»
Modificador frásico (ver mais adiante): «há anos»
Modificador preposicional (com valor locativo): «em Campo de Ourique»
Sujeito: «Gomes Freire»
Predicado: «prejudicou muito a meu irmão»
Grupo verbal: «prejudicou a meu irmão»
«muito»: complemento adverbial
«a meu irmão»: complemento preposicional com valor de complemento dire(c)to.
Nesta análise há algumas considerações a fazer, a primeira delas sobre a função
sintá(c)tica de «muito». Poderíamos pensar que se trata de um modificador, mas o seu comportamento é um tanto ambíguo, se aplicarmos um teste que consiste numa pergunta do tipo «o que fez + sujeito» (ver na TLEBS complemento adverbial, B4.3.3.5; grupo verbal, B4.2.3; modificador, B4.3.4):
(1) Gomes Freire prejudicou muito a meu irmão
(2) O que fez Gomes Freire? Prejudicou muito a meu irmão.
(3) ?O que fez muito Gomes Freire? Prejudicou a meu irmão.
A sequência (2) é aceitável, mas a (3) melhoraria se em vez de muito ocorresse
frequentemente, que não tem a mesma natureza semântica: muito, em (1), é relativo ao grau de uma propriedade, enquanto frequentemente quantifica a ocorrência de uma situação. O que (3) sugere é que «muito» é complemento de «prejudicou», o que pode fazer sentido se nos lembrarmos de que prejudicar é equivalente a fazer mal; se assim é, «prejudicar muito» é «fazer muito mal», pelo que muito afectaria um dos traços de significação do verbo.
Outro teste que a TLEBS propõe é coordenar à oração em análise uma outra, na qual ocorra também ou também não a retomarem o grupo verbal:
(4) a. *Gomes Freire prejudicou muito a meu irmão e tu também muito
b. Gomes Freire prejudicou muito a meu irmão e tu também mas pouco.
c. ?Gomes Freire prejudicou muito a meu irmão e tu também mas à minha irmã.
Vemos que, em (4a.), o teste não funciona, a não ser, como em (4b.), que juntemos uma estrutura adversativa. Poder-se-ia argumentar que estamos a “torcer” o teste para garantir a classificação de «muito» como modificador. Contudo, (4c.) indica que o teste não produz uma sequência aceitável, porque «também» retoma não só «prejudicou» mas também «a meu irmão»: «Gomes Freire prejudicou muito a meu irmão e tu também (prejudicaste a meu irmão) mas à minha irmã».
Não irei mais longe na análise de muito, sugerindo para já que é complemento adverbial do verbo. É certo que com a Nomenclatura de 1967 o uso expedito de «complemento circunstancial de quantidade» tinha a duvidosa virtude de não descrever verdadeiramente o estatuto sintá(c)tico de tais complementos circunstanciais. Há que reconhecer, no entanto, que do ponto de vista do ensino básico e até secundário, era vantajoso classificar muito como complemento circunstancial de quantidade, porque assim se dispensava a análise dos problemas levantados pela sua descrição sintáctica.
Em relação a «meu irmão», e recorrendo à terminologia disponível na TLEBS, parece-me possível formar a expressão «complemento directo preposicional» para designar o complemento directo precedido da preposição a. Esta construção costuma ser exemplificada pela sequência «amar a Deus», em que «a Deus» é não um complemento indirecto, mas sim um complemento directo. Refira-se que no português do século XVII tal construção era frequente com nomes humanos, à semelhança do que acontece ainda hoje em espanhol.
Desta maneira, parece-me que, na análise da frase em apreço, a maior dificuldade da TLEBS se encontra na descrição da expressão há horas/ dias/ anos, que não é um problema de agora, já que a antiga Nomenclatura (a de 1967) também teria dificuldade em descrevê-la. É, no entanto, lógico que se trate de uma excepção, dado que é um constituinte frásico que, sintacticamente, revela um comportamento semelhante a um modificador adverbial (ontem) e a um modificador preposicional (no ano anterior). Repito: a dificuldade não me parece estar na TLEBS, porque na nomenclatura anterior nos debateríamos com ela também.