Temos de partir do princípio de que o país Angola foi criado através de um pacto de colonização interno, depois da partilha de África pelas potências europeias. Foi um pacto entre o colonizador e o colonizado, entre o vencedor e o vencido, entre o ocupante e o ocupado.
A unidade territorial Angola, criada, penso, a partir do século XIX e mantida até hoje, não dispunha de nenhuma língua sua, mas antes de sublínguas com a mesma raiz, um pouco como as línguas europeias neolatinas.
As principais eram (e são): kikongo, kimbundu (quimbundo), umbundu (umbundo), tchokue e cuanhama, considerados pelos portugueses como dialectos. A língua portuguesa foi-se impondo como a língua da totalidade angolana, uma imposição de fora. A ideologia da colonização era simples neste aspecto: sobrevalorizar a língua do colonizador e desprezar, de acordo com os interesses estratégicos do ocupante, as sublínguas locais.
Isto culminou com a exclusão das línguas locais do ensino e com o processo de "assimilação". O que era a assimilação? Muito simples: os colonizados não eram cidadãos portugueses. Não tinham direito a bilhete de identidade. O que os tornava "legais" era: 1 - o cartão de trabalho assinado diariamente pelo patrão; 2 - o imposto indígena reconhecidamente pago. Caso contrário, eram presos nas rusgas diárias e encaminhados para: 1 - obras públicas (estradas); 2 - serviços domésticos (os colonizadores tinham o direito de ir à prisão da esquadra policial escolher um "rapaz" não nascido em Luanda ou Malanje - os destas regiões eram considerados falsos nas suas relações com os colonizadores; os do "sul" eram considerados "pretos fiéis" e por isso com muita procura para os trabalhos domésticos. Os colonizados não podiam por isso casar, mas "amigar". O casamento era para os "mestiços" (a quem os colonizadores chamavam "africanos": uma senhora "africana" era uma mulher mestiça).
Para se tornarem "cidadãos portugueses" tinham de prestar provas: ser católico praticante, dormir numa cama, ter o exame da quarta classe, falar bem português, ter só uma mulher, comer com garfo e faca, isto é, ter costumes "europeus exemplares". Isto é: o que para um qualquer branco era adquirido por nascimento, para o colonizado era adquirido depois de difíceis provas, em que, muito provavelmente, muitos europeus reprovariam.
Assim se impôs a língua portuguesa, através de redes de pequenos colonizadores, nas cidades e nos campos.
Eram comerciantes, donos de terras concedidas (depois de rapidamente expropriadas aos colonizados), etc, etc. No meu tempo, raros eram os negros ou mestiços que passavam da quarta classe para o liceu.
Exemplifico: no meu tempo fui companheiro de três ou quatro crianças negras ou mestiças no ensino primário, para centenas, se não milhares, de brancas. Logo no primeiro ano do liceu só havia um negro na minha turma de 40 alunos. No meu ensino complementar para Direito, havia uma média de 50 brancos para quatro negros e mestiços. Todos os outros ficavam pelo caminho. Isto para uma população de 500 mil brancos – 5 milhões de negros/mestiços.
A língua portuguesa nunca se misturou com as línguas locais, consideradas inferiores. Se houve alguns portugueses que conseguiram, pela sua prática de comerciantes, falar correctamente a língua local, a grande maioria utilizava apenas expressões muito pejorativas dessas línguas. Passo a exemplificar: o que se ouvia os colonizadores (neste caso os brancos) dizer, em tom de galhofa, era: "sundu ia maienu – cona da mãe; tuje - merda; munhungo – prostituição – «a gaja é uma preta do munhungo", etc, etc.
A língua portuguesa impôs-se não pela convivência, não pela procura de uma língua de mistura (ou crioula), mas pela exclusão forçada das línguas locais. São raras as expressões de línguas locais que a língua portuguesa absorveu: "maka - problema".
E é interessante ver as "nuances": um preto era sempre um rapaz, quer tivesse 10 ou 100 anos, sempre tratado por tu pelos brancos; o filho de um branco era sempre o menino; um branco era sempre o patrão; a mulher do branco era sempre a senhora; a mulher negra era a rapariga; a mulher mestiça clara era a senhora africana; os mestiços claros eram os cabritos; os negros escuros eram os pretos fulos; os pretos perigosos eram os calcinhas (de Luanda) e os malanginos e catetes; os pretos "amigos" dos brancos eram os bailundos ou os cabindas, os pretos fiéis.
Os filmes ou eram para "maiores de 13, assimilados e interditos a indígenas", ou "para maiores de 6 e indígenas". Isto é, um indígena (um negro sem BI) era considerado até à morte como uma criança menor de seis anos. O Cinema Colonial (no bairro de S. Paulo) estava assim estratificado: bancos de cimento sem costas, mesmo à beira do ecrã, para indígenas; a superior, bancos corridos de madeira com costas, para mestiços e assimilados; cadeiras individuais para os pequenos brancos; camarotes, para os menos pequenos brancos. Esse cinema chama-se hoje Popular e preencheu-me o dia-a-dia da minha meninice e adolescência. Os colonizadores nem sonham que foi aí, entre um filme de Tarzã e outro do Zorro e do Roy Rogers, que eu aprendi a ser anticolonialista convicto e, sendo branco, tornei-me antibranco (porque o branco era a face visível da tirania e da opressão), um menino de 10 anos revoltado contra o racismo, não teórico, mas ali ao meu lado, preenchendo todo o meu espaço vivencial.
Foi nessa altura que eu comecei a aprender a língua kimbundu (quimbundo), por manuais feitos por missionários. A tal ponto que ainda hoje, se me perguntarem qual é a minha verdadeira língua, eu respondo automaticamente: o kimbundu, mas também o português. Esta visão pode chocar, mas o que escrevi sou eu próprio.